9 de dezembro de 2007

O CANTO E A MUSICA DE COIMBRA - Século XVIII

DOMINGOS CALDAS BARBOSA (ca. 1740 - 1800)



Existe entre os investigadores, e aqueles que se debruçam sobre a Música e o Canto de Coimbra, práticamente uma unanimidade, no que respeita aos primeiros alvores do que se pode denominar por Canto e Música de Coimbra. Tal dever-se-à situar, em data após o Sinédrio e a implantação do Liberalismo em Portugal (1820). . Criaram-se em princípio, por estas alturas, as condições mais adequadas á sua estruturação e afirmação, após o fim da guerra civil, entre liberais e absolutista, em 27 de Maio de 1834, com a assinatura da Convenção de Évora-Monte.
Estamos nas primeiras décadas do século XIX, e a grande figura que emerge, por esta altura, e que normalmente é considerado um precursor do Canto e da Música de Coimbra, é o médico e compositor conimbricense José Dória (1824 - 1869). Essa grande figura, de humanista que foi o chamado "médico dos pobres", homem de rara sensibilidade, que nasce e morre em Coimbra, e que dava pelo nome de José António dos Santos Neves Dória.

A primeira metade do século XVII, foi profundamente dominado pela música religiosa, mais própriamente, o vilancico religioso, sendo também marcada também por uma repressão Inquisitória, a do "Santo Ofício".
As profundas reformas na sociedade, particularmente com o Marquês de Pombal, também na Reforma da Universidade e Novos Estatutos, de 1772, não são propícias ao criativismo no ambiente académico, que numa conjugação com a vertente popular, podesse vir a dar definir um início cronológico, desta realidade cultural. No entanto, a vinda de muitos professores de fora, a ida e a chegada de bolseiros de outras Universidades, traz outras informaçõs e ventos de mudança. O lente Domingos Vandelli (1735 - 1816), chegado a Portugal em 1765, entre outros professores contratados no estrangeiro, Dalla Bella e outros, em conjugação com as ideias maçónicas recentes, vêm trazer novas dinâmicas e traçar novos rumos. A Revolução Francesa de 1789, estava a caminho. Como exemplo, do espírito desse tempo, João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett, que nasce no final do século (1799 - 1854), toma contacto com essas ideias, ainda jovem adolescente, durante a sua passagem pelos Açores, e quando chega a Coimbra, onde vem a permanecer de 1816 a 1821, já traz as ideias de mudança, bem definidas.
Da Sociedade Keporática de 1820, à revolução liberal no Porto, foi um salto. Nada seria como dantes.

Os estudantes de Coimbra do século XVII, como todos os seus colegas de outras Universidades da Europa, pelo meio dos seus estudos, manietados pelas regras eclesiásticas, tinham as suas vidas mais ou menos boémias, marcadas por pândegas, petiscos em tascas, devaneios em prostíbulos, e outras atribulações da juventude. Estudavam e cantavam, dando suporte aos seus amores, ás suas diversões, á alegria e ás tritezas que lhes iam inundando a alma. A vida académica na velha Alta e os desvarios e loucuras na Baixa, íam, temperando a vida daqueles tempos.
Chegam-nos notícias desta época, sobre vários estudantes, que nas suas cantorias e tocatas, ficaram famosos, sendo habitual referir o estudante macarronista Francisco da Manuel Gomes da Silveira Malhão, o Malhão Velho, também ele cantor, tocador de viola de arame e serenateiro "encartado" ás portas dos conventos, e muito dedicado a outeiros, sobretudo freiráticos. O Malhão pequeno, António Gomes da Silveira Malhão, terá deixado também as suas marcas boémias.
Muitos outros ficaram para a história académica de Coimbra, entre eles, um que se tornou famoso a nível nacional: Domingos Caldas Barbosa, que passados três anos em Coimbra, se torna bacharel em Leis e mais tarde padre secular.

Existem alguns trabalhos biográficos sobre Caldas Barbosa, que não estão de acordo, nem com a data do nascimento, nem com o lugar onde terá nascido. Tem talvez mais consistência a tese, de que terá nascido no Rio de Janeiro, Brasil, em 1740. Seu pai, o capitão António de Caldas Barbosa, funcionário da Corte, primeiro em Angola, onde foi Tesoureiro dos Defundos e Ausentes, e depois no Brasil, como negociante na Praça do Rio de Janeiro, engravidara uma escrava negra angolana, de nome, Antónia de Jesus. Leva-a consigo para o Brasil, onde Domingos Caldas Barbosa, veio a nascer. O pai não vive muitos anos após o seu nascimento, morrendo solteiro.

No Rio de Janeiro, estudou num Colégio de Jesuítas, era muito bom aluno, muito irrequieto e criativo, e os seus escritos poéticos e satíricos, atingiam alguns poderosos, que se sentiram ofendidos pelo poeta e tocador de viola de arame. Assim, e como medida de correcção, por ordem do Governador, é alistado no exército em 1761, seguindo para a colónia de Sacramento, só regressando ao Brasil (Rio de Janeiro), em 1762, quando esta colónia é conquistada pelos Espanhóis, e embarca para Portugal.

A 1 de Outubro de 1763, já estava em Coimbra. Reinava D. José I, "O Reformador" de 1750 a 1777. Chega a Coimbra, no ano em que o Brasil é elevado a Vice-Reinado, passando a capital de S. Salvador da Baía para o Rio de Janeiro, e em que António Ribeiro Sanches (1699 - 1783), que estudara em Coimbra em 1716 - 17, vindo a concluir os seus estudos em Salamanca, publica em Paris o "Verdadeiro Método para estudar Medicina". Por esta altura, outro antigo estudante de Leis da Universidade de Coimbra, e grande poeta da estética neoclássica Correia Garção (1724 - 1772), de seu nome completo Pedro António Correia Garção, fundador e Presidente da Arcádia Lusitana em 1756, com o nome arcádico de Condon Erimanteu vive com profundas dificuldades. Fora director da Gazeta de Lisboa de 1760 a 1762. Apesar de oriundo da alta burguesia, foi sempre um crítico da ostentação aritocrática da altura, e assim, acaba morrendo na prisão do Limoeiro em Lisboa.

Domingos Caldas Barbosa faz amizades em Portugal, com o Conde de Pombeiro e irmão, ainda não se sabe bem ao certo como, no entanto parece-nos compreensível que se deverá ter contado, a ajuda e amizade de muitos estudantes brasileiros, que como ele, vinham para a Universidade de Coimbra. Entre outros, e natural também do Rio de Janeiro, o distinto Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho, cinco anos mais velho, que se vem a doutorar em Cânones, vindo a ser Reitor da Universidade, por duas vezes, de 1770 a 1779 e 1799 a 1821. O Dr. Divaldo Gaspar de Freitas (1912 - 2003), também ele brasileiro, e estudante de Coimbra que foi, explicaria com muito mais propriedade e conhecimento, se ainda estivesse entre nós, esta situação bastante bem documentada, da presença dos estudantes brasileiros, em Coimbra. O nosso FRA (Frente Republicana Académica ...), afinal, tão recente entre nós, dito pela primeira vez em Coimbra, pelos quintanistas de Medicina, na noite de 26 de Maio de 1938, é um testemunho dessas vivências.

Voltando a Caldas Barbosa, sabemos que os seus amigos de toda a vida, José e Luís Vasconcelos e Sousa, o primeiro Conde de Pombeiro e depois Marquês de Belas (1740 - 1812), o segundo, Conde de Castel Melhor (1742 - 1807) e Vice-Rei do Brasil, apresentaram-no à Corte e à melhor sociedade da época. Andavam pelas mesmas idades. Tendo-se afirmado como poeta, por altura da inauguração da estátua equestre a D. José em 1775, faz o seu precurso de vida "eclesiástica" de poeta, durante todo o reinado de D. Maria I "A Piedosa", que reina de 1777 a 1816.

Marcou de forma significativa o ambiente cultural no País, na segunda metade do século XVII, tendo sido estudante de Coimbra, em 1763-65 e 1767-68, vinte anos após o aparecimento do "Palito Métrico",em 1746, de António Duarte Ferrão, também padre de seu nome, João da Silva Rebelo, e na data da publicação da "Macarrónea Latino-Portuguesa" de 1765. Foi contemporâneo e da mesma idade que Nicolau Tolentino (1740 - 1811), que de 1760 a 1767, estudou Leis em Coimbra. Ambos eram poetas satíricos, sendo Tolentino, um boémio versejador inveterado, que não acaba o curso, e que vive pela vida fora com inúmeras dificuldades. Pensamos a passagem de Caldas Barbosa por Coimbra, lhe terá ajudado a desenvolver o estilo popular de compositor e intérprete de modinhas, que tanto se afirmava nos salões aristocráticos como junto do povo, que também o admirava. Caldas Barbosa a sair da Universidade em 1768, e José Maurício (1752 - 1815)a entrar com apenas 16 anos. José Maurício, foi um grande professor de música, lente da cadeira de música na Universidade de Coimbra, e compositor e intérprete de alto gabarito. Publicou um Método de Música de alta qualidade, tendo escrito peças sacras,sonatas para cravo, modinhas outras composições. Manuel Paixão Ribeiro, no seu livro de 1789, já apresentado neste blog, refere que se inspira no seu mestre, o professor José Maurício.Caldas. Caldas Barbosa em 1866, não se matricula na Universidade de Coimbra. Certamente não será pelo escândalo da Ana Zamperini, que em Lisboa, arrasava corações, levando quase o então Presidente da Cãmara de Lisboa, à falência e à loucura, tal fora o "fogo interior que ardia sem se ver". O pai, do presidente da edilidade, o austero e todo poderoso Marquês de Pombal,expulsa a "perigosa cantora de ópera" e proibe a participação de mulheres nos espectáculos e em palcos. Luísa Rosa de Aguiar, por casamento Luísa Todi (1753 - 1833), a nossa cantora setubalense, mundialmente célebre, tinha 13 anos, e havia de se estrear como cantora, quatro anos mais tarde (1870). Até ali, andara pela declamação.

Caldas Barbosa, foi um poeta repentista, improvisador e satírico, presbítero titular da capela do Tribunal Casa da Suplicação, tocador de viola de arame e cantor. O Conde de Pombeiro, da mesma idade, que Domingos(partindo do pressuposto que não nasceu em 1738 como alguns biógrafos afirmam), protegeu-o toda a vida. A benesse recebida, relativa a este cargo eclesiástico, dava-lhe os rendimentos necessários, sem ter que se deslocar à paróquia.

Segundo a opinião autorizada do Dr. António Manuel Nunes, em seu artigo no blog guitarradecoimbra.blogspot.com,(28-01-06), é referido que, Domingos Caldas Barbosa, conjuntamente com nomes como Francisco da Silveira Malhão e António Justiniano Baptista Botelho podem ser considerado um dos precursores da Canção de Coimbra, sendo seguramente um divulgador notório, de Modinhas e de Lunduns, muito temperadas no Brasil, com o condimento de composição e interpretação afro-brasileiro. Um homem de cultura, sensível e criativo, um espírito avançado para a época, recentemente tão maltratado, por desconhecimento e ignorância, na nossa televisão, num programa sobre a vida de Bocage, como muito bem assinalou o Dr. António Manuel Nunes, no blog e na data, já referida anteriormente.

Em 1790, sob o nome arcádico Lereno Selinuntino, Caldas Barbosa, funda a Nova Arcádia, à qual preside. Manuel Maria de Barbosa du Bocage, (1765-1805), o grande vate setubalense, passados alguns tempos, não o poupa com sátiras mordazes, por vezes racistas (ex: o orangotango a corda à banza abana) e insultuosas. Nem o poupa, a ele, nem Curvo Semedo, nem José Agostinho de Macedo, e mesmo o Conde Pombeiro, não escapa à fúria de Bocage.

Viveram na década de 1790, em Lisboa, na Nova Arcádia. Os desentendimentos entre O Lereno, Elmano Sadino (=Bocage) e outros elementos da academia, levaram a que a Nova Arcádia cessasse as actividades em 1794. António Ribeiro dos Santos (1745 - 1818), não o poupa. Sentiu-se em Casa da Marquesa de Alorna, D. Leonor de Almeida e Lencastre, poetisa de nome literário Alcipe (1750 - 1839), no Palácio Fronteira em S. Domingos de Benfica, com os versos e o canto de Caldas Barbosa, como se estivesse em "...burdeis, ou com mulheres de ma fazenda...". Alcipe e sua irmã Maria, haveriam de passar 18 anos de clausura no Mosteiro de Chelas, em Lisboa, imposta por D. José I, pelo facto de serem netas dos Marqueses de Távora. Por esta altura, em Coimbra, depois das proezas dos estudantes contetatários ao reacionarismo do Reitor Principal Mendonça (1780 - 1785), à actualidade do "Reino da Estupidez" do estudante oriundo do Brasil, Francisco de Melo Franco, segue-se a proibição de sebentas, e em 1790, proibe-se nos doutorametos, o acompanhamento a cavalo.

O célebre e rico viajante inglês William Beckford (1760 - 1844), expulso de Inglaterra por práticas sexuais condenadas na época, melómano de nomeada, regista em 1787, no seu Diário, a presença de Caldas Barbosa, de modo elogioso. Também o embaixador francês em Lisboa de 1786 a 1788, Marquês de Bombelles, faz referências elogiosas ao poeta e cantor.Ficaram documentados muitos poemas, musicados por outros, mas tocados na viola de Lereno.
Morre em Lisboa a 9 de Novembro de 1800, no ano em que Napoleão Bonaparte inicia o seu domínio da França, que se vai estender até 1814. Domingos Caldas Barbosa é sepultado na Igreja Paroquial dos Anjos. Almeida Garrett, nascera no ano anterior.