8 de março de 2008

LUCAS RODRIGUES JUNOT (1902 - 1968) - Cantor



Lucas Junot: Um Brasileiro a Cantar Coimbra[i]
(Texto com base na investigação do Rui Lopes, feitano ano de 2005)

Lucas Rodrigues Junot nasceu em Santos, Brasil, a 20 de Janiro de 1902. Filho de emigrantes portugueses em terras de Vera Cruz e morre nmesma cidade brasileira, a 29 de Agosto de 1956.
É em Santos que aprende as primeiras letras e faz os primeiros estudos até que em 1914 a família decide regressar a Portugal, instalando-se em Coimbra junto às escadas do Quebra-Costas onde habitará antes de se mudar para Montarroio. Segundo Jorge de Cantanhede é para saber onde ficavam as míticas escadas do Quebra-costas que Lucas Junot abordará pela primeira vez um polícia em Portugal, que o terá amedrontado um pouco.

Já instalado em Coimbra, é nesta cidade que frequentará o Liceu até ingressar no Curso de Matemática na Faculdade de Ciências, em 1922. Porém, já nesta época algo o destacava: cantava Fado de Coimbra quando ainda era “bicho”. Fará parte da Tuna Académica da Universidade de Coimbra, participando nas famosas tournées a Espanha (1922) e ao Brasil (1925).

A cantar Coimbra destacava-se pela sua voz característica, que Artur Paredes lhe viria a dar o epíteto de “Gata Miadeira”. Cantou muitas Canções de Coimbra, como por exemplo: Fado dos Passarinhos (Passarinho da Ribeira), Fado Sepúlveda, entre outros, em que se acompanhava ele próprio à guitarra. No entanto, ficará mais conhecido por ser o autor do célebre Fado de Santa Clara (eu ouvi de Santa Clara …), que segundo Divaldo Gaspar de Freitas terá sido inspirado ao passar a ponte de Santa Clara a olhar para Santa Clara.
Deixaria para a posterioridade vários discos de setenta e oito rotações que foi gravar a Londres.
Contudo, também continuava a cursar Matemática concluindo o curso em 1927. Paralelamente ao curso de Matemática, também namorava aquela que seria a sua futura esposa: Eugénia Gaupin de Abreu e Sousa.
Segundo Maria Isabel Cabral Moncada Cordeiro, que vivia com a tia Eugénia em Abrantes, Lucas Junot ia de comboio de Coimbra a Abrantes namorar a sua tia, fazendo-se sempre acompanhar da sua guitarra em que fazia grandes serões a tocar e a cantar no quintal da casa. Nesse mesmo ano, ter-se-á casado com a D ª Eugénia, num casamento de que nasceram três filhos: um rapaz e duas raparigas, e rumou a Luanda onde trabalhou no Banco de Angola. Porém, o seu desejo era regressar ao Brasil Natal, pelo que regressou a Portugal e no ano seguinte rumou para Santos.

Divaldo de Freitas, refere que ao chegar ao Brasil, quando perguntaram ao carregador de quem era a bagagem que transportava este respondeu, apontando para Lucas Junot: São daquele português! Chegava ao Brasil ao ponto de ser confundido com um português, porque levava Coimbra para o Brasil.
Instalou-se em Santos, mas também trabalhou no Rio de Janeiro e em S. Paulo, tendo feito parte da Academia de Ciências.

Já a trabalhar no Brasil havia algo que mexia sempre com o seu coração: Coimbra! Que fazia tenção de rever antes de deixar esta vida e sempre que Divaldo de Freitas vinha a Coimbra dizia-lhe: abrace Coimbra por mim!. Pois sempre que havia encontros de Antigos Estudantes de Coimbra ou algo relacionado com Coimbra, Lucas Junot era sempre presença assídua. Pois, quando foi fundada a Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra no Brasil, Lucas Junot foi um membro fundador e dos membros mais activos desta.

Em 1967, cumpriu-se o desejo de rever Coimbra ao ter ganho uma Bolsa da Gulbenkian. Regressou a Coimbra, tendo ficado admirado com tudo, pois, não podemos esquecer que quando Junot foi para o Brasil ainda era o tempo da Velha Alta de Coimbra. Além disso, também aproveitou o seu tempo em Portugal para visitar os seus contemporâneos da Universidade de Coimbra. Quando esteve em Lisboa, também visitou a loja da Valentim de Carvalho na baixa lisboeta, em que perguntou se ainda tinham algum disco do “Rouxinol do Mondego” (nome pelo qual era conhecido nos seus tempos de Coimbra). Disseram-lhe que tinham um disco mas que era uma relíquia da casa, pelo que não o venderiam a ninguém, a não ser que o próprio Lucas Junot lá fosse. Foi então que Junot mostrou o passaporte e se identificou, pelo que acabaram por lhe oferecer o disco.

Segundo Maria Isabel Cabral Moncada Cordeiro, também visitou Santarém tendo estado na sua casa e ido junto à sepultura de Pedro Álvares Cabral.Es senhora, acompanhou os tios ao aeroporto onde os salvou de não poderem embarcar devido a uma taxa de cem escudos que era necessário pagar e eles apenas tinham dinheiro brasileiro que ninguém queria trocar, pelo que lhes facilitou os cem escudos e os tios embarcaram para o Brasil.

Tinha cumprido o seu sonho: rever Coimbra antes de falecer! Pois, no ano seguinte, faleceu a 29 de Agosto em Santos, tendo sido sepultado no cemitério de Paquetá no dia seguinte, enquanto que a sua viúva ainda viveria muito tempo, pois, faleceu há dois anos em Santos com noventa e sete anos de idade.
Desta forma, resta-nos o seu memorial através dos discos e do seu espólio de Coimbra que se encontra no Museu Académico, onde a sua filha e neta vieram há cerca de seis anos doar ao Museu a Guitarra, a Capa, uma Fotografia, Discos, e as Fitas de Curso.
Para terminar, deixo também a letra das mais célebres Canções de Coimbra que Junot cantou.

PASSARINHO DA RIBEIRA

Passarinho da ribeira
Se não és meu inimigo
Empresta-me as tuas asas
Deixa-me ir voar contigo

Ao longe cortando espaço
Vai um bando de andorinhas
Que te levam um abraço
E muitas saudades minhas

FADO SEPÚLVEDA

Dizem que amar é viver
Mas mesmo morte que fosse
Que me importava morrer
Pois se o amar é tão doce

Se os meus olhos te incomodam
Quando estão à tua frente
Eu prefiro arrancá-los
Para te amar cegamente

FADO DE SANTA CLARA

Eu ouvi de Santa Clara
Gemidos de alguém que chora
Era a Rainha pedindo
Por mim a Nossa Senhora

Aos pés de Nossa Senhora
Rezando pedi-lhe um dia
Que não rezasse chorando
Que os anjos entristecia

[i] Rui Pedro Moreira Lopes. Licenciado em História e Pós Graduado em Ciências Documentais (Arquivo) pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Guitarra de Coimbra do Grupo de Fados de Coimbra de Abrantes fundado em 1983 pelo Dr. José Amaral.

14 de janeiro de 2008

O CANTO E A MÚSICA DE COIMBRA - Século XIX

JOSÉ ANTÓNIO DOS SANTOS NEVES DÓRIA (1824 - 1869)



Quando se aborda a história do Canto e da Música de Coimbra, no século XIX, é incontornável referir o médico, compositor e violista, que foi, José Dória, o chamado "médico dos pobres". José António dos Santos Neves Dória, nasceu em Coimbra, na casa paterna na Rua do Loureiro, a 9 de Novembro de 1824, e vem a falecer na mesma cidade, na sua casa na Rua do Cabido, a 25 de Maio de 1869.
Nasce no ano do movimento militar anti-liberal "a Abrilada", conduzido por D. Miguel (1802 -1866), levando a que o pai, D. João VI (1767 - 1826), se refugiasse num navio inglês surto no Tejo. Nesse ano, em Junho, é aprovada a Carta Constitucional, que cauciona o Absolutsmo. D. Miguel, em Maio, fora desterrado para Viena de Áustria. Lá fora, o positivismo dá os primeiros passos com a publicação do "Systhémede Politique Positive, de Auguste Compte.

José Dóra, não casou, não deixou filhos. Da amizade fraterna dos seus amigos, não há dúvidas. A lápide do seu mausoléu, no cemitério da Conchada, suportada pela figura da Caridade, diz simplesmente: "dos seus amigos". O frontão que se apresenta acima, é do túmulo funerário, e é a única referência deste tipo que conhecemos sobre José Dória. A fotografia instalara-se em Coimbra nos anos 60, onde um francês, abrira uma casa de fotografia na Rua da Sofia.

Os seus pais, nascidos em Côja, mudaram-se para Coimbra já com filho João Dória, o mais velho, nascido, tendo ainda vindo a ter mais dois filhos, dos quais o do meio, o José Dória, é o médico, compositor e violista, que tão bem representa a junção da vertente de inspiração académica e da popular no Canto e na Música de Coimbra.
O filho mais novo, António Dória, teve apenas uma matrícula na Universidade.
José Dória, aos 12 anos entra no Colégio das Artes (1836), onde o pai era professor de latim, aos 15 anos, na Faculdade de Filosfia (1841)e aos 17 anos (1841) está no primeiro ano da Faculdade de Medicina, onde se vem a formar-se em 1846. Forma-se no ano da rebelião da Maria da Fonte seguida da guerra civil da Patuleia, num ano de grave crise económica e social e de revolta contra o Cabralismo. Pela Patuleia, que rebenta em Setembro de 1946, José Dória está perto dos seus 22 anos, que fará a 9 de Novembro desse ano.

José Dória entra no Colégio das Artes (1836), no ano do segundo casamento de D. Maria II (1819 - 1853) em Janeiro, viúva apenas há uma ano, casando desta vez com D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gotha. Seu filho Pedro, (D. Pedro V) nascerá a 16 de Setembro desse ano, enquanto que o seu irmão D. Luís, que vem a ser rei, pela morte prematura de Pedro V aos 24 anos, nasce no ano seguinte, a 31 de Outubro, de 1838.

Este ano de 1846, corresponde a um período conturbado políticamente, com a revolta dos Setembristas no Porto, as demissões no Governo conservador do Duque da Terceira, e onde ainda se combatem absolutistas (guerrilhas pró-miguelistas), como seja o caso do Algarve, onde só dois anos mais tarde, é capturado e fuzilado em Faro, o seu comandante, Joaquim José da Silva Reis, o célebre "Remexido", que passara a ferro e fogo, parte do Alentejo e Algarve.

Foram criados os liceus nesse ano de 1846, ainda se compravam e exportavam escravos situação que apenas vem a ser totalmente abolida com a libertação dos mesmos em 1878. José Dória falecera há 9 anos.
Este século XIX, que começa com o Bloqueio Continental da França, comandada por Napoleão Bonaparte, e cujo governo durou de 1800 a 1814, passará pelas quatro invasões espanhola -francesa e francesas de 1801 (Godoy), 1807 (Junot), 1809 (Soult) e 1810 (Massena). A seguir, um período difícil, socio-político, que passa pela tutela, regência e comando do exército português, pelos ingleses e pelo general William Car Beresford (1778 - 1854), pela elevação do Brasil à categoria de Reino (1815), à morte de D. Maria II (1816), à execução do General Gomes Freire de Andrade e dos bravos, que com ele afrontaram o absolutismo retrógado (1817). Seguiu-e a fundação do Sinédrio, no Porto (1818), à revolução liberal de 24 de Agosto, no Porto (1820), a extinção do Tribunal do Santo Ofício (Inquisição) e ao regresso de D. João VI a Portugal (1821), à independência de facto, do Brasil e o Congresso de Viena(1822). A revolta da Vilafrancada (1823) restaura o absolutismo, no ano em que em Coimbra, os irmãos Passos iniciam a publicação do jornal "O Amigo do Povo".
O movimento anti-liberal, condizido por D.Miguel, na Abrilada (1824), tenta destituir o "pai" e leva ao seu destarramento para Viena de Áustria. Falamos de D. João VI, o "Pai oficial" de D. Miguel, pois havia quem afirmasse na Corte, que o infante seria filho dum criado ou de um médico da Corte. D. Carlota Joaquina, louca por amores extra conjugais, ardente e feia, por certo não teria grandes problemas com esses rumores. Contam os cronistas da época, que Junot, embaixador da França,vinte anos antes, e que por certo ocupava os seus sonhos "messalínicos" fugia da dita senhora a "sete pés". Os desenhos satíricos da época, apresentavam D. João VI, com um enorme "par de cornos". D. João VI, morrerá em 1826, de forma ainda por esclarecer, desconfiando-se que tenha sido envenenado. No meio destas "loucuras", o Duque de Loulé é assassinado. O povo sofre, a aristocracia conservadora diverte-se, o filho D. Pedro I (futuro D. Pedro IV de Portugal), é imperador do Brasil. No meio deste período histórico tão conturbado, nasce José Doria, a 9 de Novembro desse ano (1824). D. Pedro IV morrerá passados 10 anos (1834), subindo ao trono a sua filha D. Maria II, que governará até 1853, ano em que morre. A partir daqui, José Dória, ainda conhecerá os reis D. Pedro V (1837 - 1861),que morre de tifo na companhia de dois irmãos, na frescura dos 24 anos, e ainda o seu irmão (Lipipi), que virá a ser o nosso rei D.Luís I.

Como se disse, José Dória, nasce na casa paterna na Rua do Loureiro, com seus pais e irmão mais velho e padrinho de baptismo, João Dória. Com eles aprende as primeiras letras, e ingressa no Colégio das Artes aos seus 12 anos (1836). Aos 15 anos (1839), está na Faculdade de Filosofia, nos estudos preparatórios para a entrada na Faculdade de Medicina, onde entra com 17 anos. Corre o ano de 1841. Forma-se no ano de 1846. No ano de 1847 a Universidade está fechada, por força da Revolução da Maria da Fonte e depois da guerra da Patuleia.

Recém formado, José Dória, rapaz de ideais de justiça e de solidariedade, entra na recém criada Carbonária Lusitana (Académica), em 29 de Maio de 1848, marcando a sua discordância contra uma sociedade de pobreza, de desigualdades e de exploração, vindo a presidir à Choça Liberdade(1848). Era o "bom primo" Hufland. A esta situação, não é alheio o seu amigo Joaquim Martins de Carvalho (1822 - 1898), dois anos mais velho, carbonário, maçon e patuleia, que tanto fez como jornalista sério e honesto, e tanto nos deixou escrito, sobre a história de Coimbra e das suas gentes. A Academia sempre irreverente e satírica, não deixou "descançar" o célebre "doutor Latas" com partidas e disputas literárias, não esquecendo o facto de Joaquim Martins de Carvalho, nas suas origens, ter sido latoeiro.
Esse ano de 1847, ficou ainda célebre, entre outras situações, pelo fim da guerra civil da Patuleia e pela assinatura da Convenção do Gramido(29 de Junhode 1847), em localidade perto do Porto. A esta situação, não são alheios os ventos modernos dos novos Estatutos da Universidade vinos da Reforma Pombalina, a vinda de professores estrangeiros, entre os quais o professor Domenico Agostino Vandelli (1735 - 1816), as revoltas contra as invasões estrangeiras (de 1801 a 1810), os Batalhões Académicos, e sobretudo, os ventos de mudança que vinham da Europa.

José Dória, torna-se num médico popular, amado pelas gentes de Coimbra, está em 1851 na luta contra a cólera morbus, e nas suas consultas, os pobres não pagavam.
Com o seu irmão António, acode aos incêndios das redondezas, numa postura solidária e altruista, consentânea com os seus ideais liberais e de solidariedade.

Tocava orgão e viola desde jovem, aperfeiçoara os seus conhecimentos nas aulas de Música do professor José Maximiano Dias, mestre de música no Semináio Episcopal, que fora discípulo do lente de música José Maurício (1752 - 1815).. Compunha e tocava viola toeira, dizia-se que como ninguém. Diz-se que em jovem, construira um orgão onde ele próprio tocaria.Comparse Hermann , o grande actor e prestidigidor internacional, que Academia muito admirava, queria que ele o acompanhasse nas suas digressões pela Europa. Não aceitou, pois Coimbra e os seus doentes, estavam primeiro.
Em Lisboa, encantou, com as suas variações e o seu desempenho à viola. São do seu tempo em Coimbra, comoe referiu Joaquim Martins de Carvalho,o célebre jornalista, o maior do seu género naquela época, fundador do Observador e depois director do Conimbricense, Arnaldo de Sousa Dantas da Gama (1828 - 1869) que formado em Direito, segue para o Porto, Camilo Castelo Branco (1825 - 1890), que pouco tempo passou em Coimbra, mesmm assimo, fez amizade com Joaquim Martins de Carvalho, o poeta António Gonçalves Dias (1823 - 1864), José Anchieta (1832 - 1897), António de Oliveira da Silva Gaio (1830 - 1870), o médico e lente da Universidade, autor do livro "Mário", que vem à estampa ainda em vida de José Dória (1868), António Augusto Soares de Passos (1826 - 1860) o poeta ultra-romântico do "Noivado do Sepulcro", o lente em Cânones, Vicente Ferrer Neto Paiva (1798 - 1886) crítico acérrimo de Costa Cabral, deputado e ministro do Reino, Tomás Ribeiro (1831 -1901), o grande João de Deus(1830 - 189) o poeta ultra-romântico, Serpa Pimentel (1825 1900), e muitos outros.

Também, Almeia Garrett (1799 - 1854), António Pedro Lopes de Mendonça (1826 - 1865), o célebre actor Taborda, de seu nome Francisco Alves da Silva Taborda, que tantos peças representou em Coimbra, ficando célebre na irreverênca académica "o rapto o actor Taborda", Inocêncio Francisco da Silva (1810 - 1876), José Dias Ferreira (1837 - 1909), António de Oliveira Marreca (1805 - 1889),Rebelo da Silva (1822 - 1871), Passos Manuel (1801 - 1862),José Estêvão (1808 - 1862), António Feliciano de Castilho (1800 - 1875), Joaquim António de Aguiar (1792 - 1884),Julio Dinis (1839 - 1871), Emília das Neves (1820 - 1883),etc.

Sobre José Dória, Teófilo Braga (1843 - 1926) escreveu: "Este médico, bela figura de peninsular, assombrava todos com as suas variações sobre o Fado de Coimbra"

Joaquim de Vasconcelos (1858 - 1941) que o conheceu em 1863, ficou encantado com a pessoa e com o artista, e sobre ele, refere no seu livo "Os Musicos Portugueses" as suas composições para viola toeira:

- A Dôr, Resignação, Saudade, 2 Valsas Burlescas, Capricho burlesco, Canção ingleza, Queixume, Um Sonho, Canção Tyroleza, I Remember, Mazourka, Desalento, Lamentos, Caprichosa, Serenata, Desdém, Incógnita, Tango: Ai, que ferro!, Fantasia obre a Walsa do Pardon de Ploermel, Variações sobre o Carnaval de Veneza, Marcha Solemne, Preghiera, Capricho de Concerto (Introdução - Andante - Scherzo - Final). Acrescenta ainda Joaquim de Vasconcelos: "Quem haverá em Coimbra que não ouvisse a Dôr?" afirmando que "Capricho de Concerto" é certamente a mais notável das suas composições. Lamentávelmente já em 1870, Joaquim de Vasconcelos, dizia que "Todas estas composições ficaram em manuscripto, salvo uma ou outra foi litographada". São conhecidas as seguintes pautas musicais (1) e (2):

- Amores, Amores (Não sou eu tão tola que caia em casar)(1)

Música: José Dória
Letra: João de Deus (1830 - 1896)

- Coimbra - Recordações (Coimbra, terra de encanto)(1)

Música: José Dória
Letra: João de Lemos Seixas Castelo Branco (1819 - 1890)

- Ela por Ela (Mais florido que um palmito)(1)

Música: José Dória
Letra: João de Seixas Castelo Branco

- Os Quadros (Tango)(2)

Música: José Dória

Ficam pois algumas notas biográficas, sobre este grande compositor e intérprete,figura determinante nos primórdios do Canto e da Música de Coimbra, cuja vocação era a música, mas que quiz o destino que tivesse sido médico.
Joaquim de Vasconcelos entristecia-se quando ouvia José Doria dizer que "se acusava amargamente de ter fugido à sua vocação" e concluía: "Ganhei a vida a perdê-la".
Para o povo de Coimbra, foi "um artista e um benfeitor" diz-nos Joaquim de Vasconcelos, na página 91, do seu livro "Os Musicos Portuguezes", Vol. I, da Imprensa Portugueza, Porto, 1870.
José Dória, falecera no ano anterior.



(1) Informação do Coronel José Anjos de Carvalho

(2) Pesquisa do Dr. Antónío Manuel Nunes(in "guitarradecoimbra.blogspot.com)

9 de dezembro de 2007

O CANTO E A MUSICA DE COIMBRA - Século XVIII

DOMINGOS CALDAS BARBOSA (ca. 1740 - 1800)



Existe entre os investigadores, e aqueles que se debruçam sobre a Música e o Canto de Coimbra, práticamente uma unanimidade, no que respeita aos primeiros alvores do que se pode denominar por Canto e Música de Coimbra. Tal dever-se-à situar, em data após o Sinédrio e a implantação do Liberalismo em Portugal (1820). . Criaram-se em princípio, por estas alturas, as condições mais adequadas á sua estruturação e afirmação, após o fim da guerra civil, entre liberais e absolutista, em 27 de Maio de 1834, com a assinatura da Convenção de Évora-Monte.
Estamos nas primeiras décadas do século XIX, e a grande figura que emerge, por esta altura, e que normalmente é considerado um precursor do Canto e da Música de Coimbra, é o médico e compositor conimbricense José Dória (1824 - 1869). Essa grande figura, de humanista que foi o chamado "médico dos pobres", homem de rara sensibilidade, que nasce e morre em Coimbra, e que dava pelo nome de José António dos Santos Neves Dória.

A primeira metade do século XVII, foi profundamente dominado pela música religiosa, mais própriamente, o vilancico religioso, sendo também marcada também por uma repressão Inquisitória, a do "Santo Ofício".
As profundas reformas na sociedade, particularmente com o Marquês de Pombal, também na Reforma da Universidade e Novos Estatutos, de 1772, não são propícias ao criativismo no ambiente académico, que numa conjugação com a vertente popular, podesse vir a dar definir um início cronológico, desta realidade cultural. No entanto, a vinda de muitos professores de fora, a ida e a chegada de bolseiros de outras Universidades, traz outras informaçõs e ventos de mudança. O lente Domingos Vandelli (1735 - 1816), chegado a Portugal em 1765, entre outros professores contratados no estrangeiro, Dalla Bella e outros, em conjugação com as ideias maçónicas recentes, vêm trazer novas dinâmicas e traçar novos rumos. A Revolução Francesa de 1789, estava a caminho. Como exemplo, do espírito desse tempo, João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett, que nasce no final do século (1799 - 1854), toma contacto com essas ideias, ainda jovem adolescente, durante a sua passagem pelos Açores, e quando chega a Coimbra, onde vem a permanecer de 1816 a 1821, já traz as ideias de mudança, bem definidas.
Da Sociedade Keporática de 1820, à revolução liberal no Porto, foi um salto. Nada seria como dantes.

Os estudantes de Coimbra do século XVII, como todos os seus colegas de outras Universidades da Europa, pelo meio dos seus estudos, manietados pelas regras eclesiásticas, tinham as suas vidas mais ou menos boémias, marcadas por pândegas, petiscos em tascas, devaneios em prostíbulos, e outras atribulações da juventude. Estudavam e cantavam, dando suporte aos seus amores, ás suas diversões, á alegria e ás tritezas que lhes iam inundando a alma. A vida académica na velha Alta e os desvarios e loucuras na Baixa, íam, temperando a vida daqueles tempos.
Chegam-nos notícias desta época, sobre vários estudantes, que nas suas cantorias e tocatas, ficaram famosos, sendo habitual referir o estudante macarronista Francisco da Manuel Gomes da Silveira Malhão, o Malhão Velho, também ele cantor, tocador de viola de arame e serenateiro "encartado" ás portas dos conventos, e muito dedicado a outeiros, sobretudo freiráticos. O Malhão pequeno, António Gomes da Silveira Malhão, terá deixado também as suas marcas boémias.
Muitos outros ficaram para a história académica de Coimbra, entre eles, um que se tornou famoso a nível nacional: Domingos Caldas Barbosa, que passados três anos em Coimbra, se torna bacharel em Leis e mais tarde padre secular.

Existem alguns trabalhos biográficos sobre Caldas Barbosa, que não estão de acordo, nem com a data do nascimento, nem com o lugar onde terá nascido. Tem talvez mais consistência a tese, de que terá nascido no Rio de Janeiro, Brasil, em 1740. Seu pai, o capitão António de Caldas Barbosa, funcionário da Corte, primeiro em Angola, onde foi Tesoureiro dos Defundos e Ausentes, e depois no Brasil, como negociante na Praça do Rio de Janeiro, engravidara uma escrava negra angolana, de nome, Antónia de Jesus. Leva-a consigo para o Brasil, onde Domingos Caldas Barbosa, veio a nascer. O pai não vive muitos anos após o seu nascimento, morrendo solteiro.

No Rio de Janeiro, estudou num Colégio de Jesuítas, era muito bom aluno, muito irrequieto e criativo, e os seus escritos poéticos e satíricos, atingiam alguns poderosos, que se sentiram ofendidos pelo poeta e tocador de viola de arame. Assim, e como medida de correcção, por ordem do Governador, é alistado no exército em 1761, seguindo para a colónia de Sacramento, só regressando ao Brasil (Rio de Janeiro), em 1762, quando esta colónia é conquistada pelos Espanhóis, e embarca para Portugal.

A 1 de Outubro de 1763, já estava em Coimbra. Reinava D. José I, "O Reformador" de 1750 a 1777. Chega a Coimbra, no ano em que o Brasil é elevado a Vice-Reinado, passando a capital de S. Salvador da Baía para o Rio de Janeiro, e em que António Ribeiro Sanches (1699 - 1783), que estudara em Coimbra em 1716 - 17, vindo a concluir os seus estudos em Salamanca, publica em Paris o "Verdadeiro Método para estudar Medicina". Por esta altura, outro antigo estudante de Leis da Universidade de Coimbra, e grande poeta da estética neoclássica Correia Garção (1724 - 1772), de seu nome completo Pedro António Correia Garção, fundador e Presidente da Arcádia Lusitana em 1756, com o nome arcádico de Condon Erimanteu vive com profundas dificuldades. Fora director da Gazeta de Lisboa de 1760 a 1762. Apesar de oriundo da alta burguesia, foi sempre um crítico da ostentação aritocrática da altura, e assim, acaba morrendo na prisão do Limoeiro em Lisboa.

Domingos Caldas Barbosa faz amizades em Portugal, com o Conde de Pombeiro e irmão, ainda não se sabe bem ao certo como, no entanto parece-nos compreensível que se deverá ter contado, a ajuda e amizade de muitos estudantes brasileiros, que como ele, vinham para a Universidade de Coimbra. Entre outros, e natural também do Rio de Janeiro, o distinto Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho, cinco anos mais velho, que se vem a doutorar em Cânones, vindo a ser Reitor da Universidade, por duas vezes, de 1770 a 1779 e 1799 a 1821. O Dr. Divaldo Gaspar de Freitas (1912 - 2003), também ele brasileiro, e estudante de Coimbra que foi, explicaria com muito mais propriedade e conhecimento, se ainda estivesse entre nós, esta situação bastante bem documentada, da presença dos estudantes brasileiros, em Coimbra. O nosso FRA (Frente Republicana Académica ...), afinal, tão recente entre nós, dito pela primeira vez em Coimbra, pelos quintanistas de Medicina, na noite de 26 de Maio de 1938, é um testemunho dessas vivências.

Voltando a Caldas Barbosa, sabemos que os seus amigos de toda a vida, José e Luís Vasconcelos e Sousa, o primeiro Conde de Pombeiro e depois Marquês de Belas (1740 - 1812), o segundo, Conde de Castel Melhor (1742 - 1807) e Vice-Rei do Brasil, apresentaram-no à Corte e à melhor sociedade da época. Andavam pelas mesmas idades. Tendo-se afirmado como poeta, por altura da inauguração da estátua equestre a D. José em 1775, faz o seu precurso de vida "eclesiástica" de poeta, durante todo o reinado de D. Maria I "A Piedosa", que reina de 1777 a 1816.

Marcou de forma significativa o ambiente cultural no País, na segunda metade do século XVII, tendo sido estudante de Coimbra, em 1763-65 e 1767-68, vinte anos após o aparecimento do "Palito Métrico",em 1746, de António Duarte Ferrão, também padre de seu nome, João da Silva Rebelo, e na data da publicação da "Macarrónea Latino-Portuguesa" de 1765. Foi contemporâneo e da mesma idade que Nicolau Tolentino (1740 - 1811), que de 1760 a 1767, estudou Leis em Coimbra. Ambos eram poetas satíricos, sendo Tolentino, um boémio versejador inveterado, que não acaba o curso, e que vive pela vida fora com inúmeras dificuldades. Pensamos a passagem de Caldas Barbosa por Coimbra, lhe terá ajudado a desenvolver o estilo popular de compositor e intérprete de modinhas, que tanto se afirmava nos salões aristocráticos como junto do povo, que também o admirava. Caldas Barbosa a sair da Universidade em 1768, e José Maurício (1752 - 1815)a entrar com apenas 16 anos. José Maurício, foi um grande professor de música, lente da cadeira de música na Universidade de Coimbra, e compositor e intérprete de alto gabarito. Publicou um Método de Música de alta qualidade, tendo escrito peças sacras,sonatas para cravo, modinhas outras composições. Manuel Paixão Ribeiro, no seu livro de 1789, já apresentado neste blog, refere que se inspira no seu mestre, o professor José Maurício.Caldas. Caldas Barbosa em 1866, não se matricula na Universidade de Coimbra. Certamente não será pelo escândalo da Ana Zamperini, que em Lisboa, arrasava corações, levando quase o então Presidente da Cãmara de Lisboa, à falência e à loucura, tal fora o "fogo interior que ardia sem se ver". O pai, do presidente da edilidade, o austero e todo poderoso Marquês de Pombal,expulsa a "perigosa cantora de ópera" e proibe a participação de mulheres nos espectáculos e em palcos. Luísa Rosa de Aguiar, por casamento Luísa Todi (1753 - 1833), a nossa cantora setubalense, mundialmente célebre, tinha 13 anos, e havia de se estrear como cantora, quatro anos mais tarde (1870). Até ali, andara pela declamação.

Caldas Barbosa, foi um poeta repentista, improvisador e satírico, presbítero titular da capela do Tribunal Casa da Suplicação, tocador de viola de arame e cantor. O Conde de Pombeiro, da mesma idade, que Domingos(partindo do pressuposto que não nasceu em 1738 como alguns biógrafos afirmam), protegeu-o toda a vida. A benesse recebida, relativa a este cargo eclesiástico, dava-lhe os rendimentos necessários, sem ter que se deslocar à paróquia.

Segundo a opinião autorizada do Dr. António Manuel Nunes, em seu artigo no blog guitarradecoimbra.blogspot.com,(28-01-06), é referido que, Domingos Caldas Barbosa, conjuntamente com nomes como Francisco da Silveira Malhão e António Justiniano Baptista Botelho podem ser considerado um dos precursores da Canção de Coimbra, sendo seguramente um divulgador notório, de Modinhas e de Lunduns, muito temperadas no Brasil, com o condimento de composição e interpretação afro-brasileiro. Um homem de cultura, sensível e criativo, um espírito avançado para a época, recentemente tão maltratado, por desconhecimento e ignorância, na nossa televisão, num programa sobre a vida de Bocage, como muito bem assinalou o Dr. António Manuel Nunes, no blog e na data, já referida anteriormente.

Em 1790, sob o nome arcádico Lereno Selinuntino, Caldas Barbosa, funda a Nova Arcádia, à qual preside. Manuel Maria de Barbosa du Bocage, (1765-1805), o grande vate setubalense, passados alguns tempos, não o poupa com sátiras mordazes, por vezes racistas (ex: o orangotango a corda à banza abana) e insultuosas. Nem o poupa, a ele, nem Curvo Semedo, nem José Agostinho de Macedo, e mesmo o Conde Pombeiro, não escapa à fúria de Bocage.

Viveram na década de 1790, em Lisboa, na Nova Arcádia. Os desentendimentos entre O Lereno, Elmano Sadino (=Bocage) e outros elementos da academia, levaram a que a Nova Arcádia cessasse as actividades em 1794. António Ribeiro dos Santos (1745 - 1818), não o poupa. Sentiu-se em Casa da Marquesa de Alorna, D. Leonor de Almeida e Lencastre, poetisa de nome literário Alcipe (1750 - 1839), no Palácio Fronteira em S. Domingos de Benfica, com os versos e o canto de Caldas Barbosa, como se estivesse em "...burdeis, ou com mulheres de ma fazenda...". Alcipe e sua irmã Maria, haveriam de passar 18 anos de clausura no Mosteiro de Chelas, em Lisboa, imposta por D. José I, pelo facto de serem netas dos Marqueses de Távora. Por esta altura, em Coimbra, depois das proezas dos estudantes contetatários ao reacionarismo do Reitor Principal Mendonça (1780 - 1785), à actualidade do "Reino da Estupidez" do estudante oriundo do Brasil, Francisco de Melo Franco, segue-se a proibição de sebentas, e em 1790, proibe-se nos doutorametos, o acompanhamento a cavalo.

O célebre e rico viajante inglês William Beckford (1760 - 1844), expulso de Inglaterra por práticas sexuais condenadas na época, melómano de nomeada, regista em 1787, no seu Diário, a presença de Caldas Barbosa, de modo elogioso. Também o embaixador francês em Lisboa de 1786 a 1788, Marquês de Bombelles, faz referências elogiosas ao poeta e cantor.Ficaram documentados muitos poemas, musicados por outros, mas tocados na viola de Lereno.
Morre em Lisboa a 9 de Novembro de 1800, no ano em que Napoleão Bonaparte inicia o seu domínio da França, que se vai estender até 1814. Domingos Caldas Barbosa é sepultado na Igreja Paroquial dos Anjos. Almeida Garrett, nascera no ano anterior.

25 de novembro de 2007

Luíz Goes - O Neo-Modernismo no Canto de Coimbra


Luíz Goes, de seu nome completo Luíz Fernando de Sousa Pires de Goes, nasceu em Coimbra a 5 de Janeiro de 1933. Em Coimbra, porque seu pai, chefe de serviço na Caixa Geral de Depósitos no Porto, foi um dia em trabalho de inspecção, à delegação local daquele banco, e a mãe, que tinha aí família, convenceu-o a mudarem-se para Coimbra. Luíz nasce numa espécie de berço musical, crescendo a ouvir o seu tio Armando Goes (uma das vozes mais notáveis da Coimbra dos anos 20), sendo ainda, frequentemente acompanhado pelo pai à guitarra e a mãe ao piano. Não admira então que cedo se tenha iniciado no canto, conhecendo uma auspiciosa estreia pública aos 14 anos de idade, numa festa do Liceu D. João III (actual Escola Secundaria José Falcão). Aí canta "Feiticeira", fado-canção da autoria de Ângelo Vieira Araújo, um compositor, poeta e intérprete celebrizado por composições conhecidas de todos, e também, pela adopção de duas delas, no filme "Capas Negras" (1947), repudiado pela Academia e interdito em Coimbra, durante anos.

Luíz, é então considerado uma espécie de "menino prodígio" e tem a honra de ser acompanhado em festas e reuniões de convívio de antigos estudantes, por Artur Paredes, Afonso de Sousa e até Francisco Menano, irmão mais velho de António Menano. Entre os seus colegas de liceu e cúmplices das cantigas estão o guitarrista António Portugal e José Afonso que, como ele, virão a integrar o grupo liderado pelo guitarrista António Brojo. Em 1952, o grupo é convidado para gravação de oito discos de 78 rotações. Dois deles têm a voz de Luiz Goes, que ingressara no curso de Medicina dois anos antes. São registos históricos, na medida em que desde os anos 20 com a chamada "geração de ouro da música coimbrã" – a que integrou nomes tão marcantes como Edmundo de Bettencourt, António Menano, Lucas Junot, José Paradela de Oliveira, Almeida D’Eça e Artur Paredes – não houvera mais edições discográficas de canção de Coimbra. No início dos anos 50, regista-se em Coimbra uma renovação estética e cultural, enquanto o círculo musical que gravita em torno de António Brojo retoma a tradição de fazer serenatas semanais aos microfones da Emissora Nacional. Daí decorre o convite da Alvorada, editora sediada no Porto, para gravar as novas revelações da música de Coimbra (Luiz Goes, José Afonso, Fernando Rolim, António Portugal), cujas sessões de gravação decorrem nos próprios estúdios da delegação local da Emissora Nacional. Luiz Goes canta quatro fados – "Dobadoira", "Rezas à Noite (Ave Maria)", "Minha Barca" e "Soneto" –, sendo os dois últimos da sua autoria (letra e música). O acompanhamento instrumental é de António Brojo, António Portugal (guitarras), Aurélio Reis e Mário de Castro (violas).

Luíz Goes fala assim do seu início de vida artística: «Cantores clássicos tinha eu na família. O Armando Goes, meu tio, um grande cantor, e ´é através dele conheci todos os outros da sua geração. O Artur Paredes, por exemplo, acompanhou-me tinha eu nove anos de idade. Tinha o conhecimento directo dessas individualidades, era essa a minha vantagem. Enquanto que para os meus colegas os cantores dos anos 20 eram figuras míticas, para mim eram figuras íntimas. Senti o peso dessas referências, claro, quando gravei pela primeira vez. Mas também me sentia livre porque a minha vocação, segundo se dizia na altura, era para a música erudita. Estive, aliás, no Instituto de Música de Coimbra, onde fui ensinado pela professora Arminda Correia, que depois veio para o Conservatório de Lisboa. Andei a aprender solfejo, porque os fados de Coimbra conhecia eu de cor e salteado. Mas sentia necessidade de fazer algo inovador, porque repetir o passado não valia a pena. Durante muito tempo para se cantar o fado de Coimbra tinha se ser à maneira do Menano com voz fininha e por aí adiante. Eu quis aproveitar o que estava feito para introduzir uma forma mais livre da canção coimbrã».

Luíz Goes nos seus tempos de estudante, integra o Orfeão Académico, onde é solista do naipe de barítonos, e o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), dirigido pelo Professor Paulo Quintela. Colabora também com outros organismos académicos, em especial com a Tuna Académica. Em Coimbra, e para além do grupo de António Brojo, é acompanhado (ainda no liceu) por Manuel Mora à guitarra e por Manuel Costa Brás, à viola. Depois, e até 1958, será ainda acompanhado pelas guitarras de Fernando Xavier, Jorge Godinho, Dário Cruz, David Leandro Ribeiro e José Niza, e pelas violas de Aurélio Reis, Mário de Castro, Manuel Pepe e Levy Baptista.

Em 1954, Luíz Goes estreia-se na televisão, no Canal 7 da TV Paulista, quando o Orfeão Académico é convidado a participar nas comemorações do 4.º Centenário da Cidade de São Paulo. Luíz Goes será também um dos cantores a actuar na primeira serenata de Coimbra transmitida em directo pela RTP, em 1957, de um olival junto dos Estúdios do Lumiar e com realização de Ruy Ferrão (filho de Raul Ferrão, compositor da celebérrima "Coimbra"). Futuramente, Luiz Goes será um dos artistas portugueses mais requisitados para actuações em televisões estrangeiras (Espanha, França, Suécia, Áustria, Estados Unidos da América, Brasil, África do Sul, etc.), e para participação em espectáculos de grande dimensão cultural (Universidade de Georgetown - Washington; Congresso de Cultura da Língua Portuguesa; aniversário das Nações Unidas - Genebra; homenagem a Beethoven - Viena; etc.).

Em 1956, Luíz Goes grava mais três composições – "Graça de Deus", "Carta (Soneto) " e "Fado da Despedida" – incluídos em tantos EP de "Fados e Guitarradas de Coimbra" (editados pela Alvorada), tendo como acompanhadores António Portugal, Jorge Godinho (guitarras), Manuel Pepe e Levy Baptista (violas).

Em Março de 1957, Luíz Goes dá voz ao histórico registo do Coimbra Quintet, primeiramente editado com o título "Serenata de Coimbra" e, posteriormente, "Fados de Coimbra". A iniciativa parte do professor Mário Silva, anos antes excluído do corpo docente da Universidade, pela sua conhecida oposição ao regime de Salazar, e que fora convidado para assumir o cargo de administrador da divisão portuguesa da editora Philips. Mário Silva, propõe a gravação de um álbum de música de matriz coimbrã e a escolha recai sobre o grupo de António Portugal que, além do próprio, era composto por Jorge Godinho (guitarras), Manuel Pepe e Levy Baptista (violas). A voz solista inicialmente escolhida é a de Fernando Machado Soares, mas uma indisponibilidades deste, leva que seja Luiz Goes, que vinha acompanhando a preparação do disco e contribuído com alguns arranjos, a escolha natural para ocupar o lugar. O registo é efectuado em Madrid, nos Teatro do Príncipe Real, e vem a ser escolhido para representar Portugal numa colecção de músicas do mundo que a Philips então comercializa. O álbum conhece inúmeras edições e uma multiplicidade de capas diferentes, consagrando-se como um êxito internacional (é, ainda hoje, o disco de música de Coimbra mais vendido em todo o mundo).

Curiosamente, só dois anos depois de gravado é que o disco chega a Portugal, onde se torna um clássico instantâneo. Do álbum fazem parte fados tão conhecidos como "Fado Hilário" (Augusto Hilário), "Fado do Estudante" (Vicente Arnoso / Fernando Machado Soares) e "Serra d’Arga" (popular). A propósito deste álbum lendário, Luiz Goes diz-nos: «Não é um trabalho só meu. Mas é um disco em que tenho a parte principal, porque sou o homem que dá a voz a todos os temas, tirando quatro guitarradas necessárias para compor o ramalhete. Mais tarde aparece a Philips a dizer que queria que o disco ficasse só em meu nome. Mas eu disse-lhes: "Ao menos ponham lá o nome do António Portugal, que é o homem da guitarra". E assim foi feito. Foi um disco que causou um grande impacto. Tecnicamente é muito mais evoluído que aqueles que foram gravados nos anos 20. Depois houve uma colheita de temas populares feita com muito critério e com uma tendência muito marcada para trazer canções populares para o meio urbano. É um disco em que a voz é posta ao serviço da cultura e não da pieguice. Para mim foi o primeiro disco moderno que se gravou de música coimbrã».

Em 1958, Luíz Goes termina a licenciatura em Medicina, e muda-se para Lisboa onde passa a exercer a especialidade de estomatologia. Casa-se e nasce o primeiro filho mas esse primeiro casamento, no entanto, não será muito duradouro. Em 1963, o médico-cantor é chamado para o serviço militar, sendo mobilizado para a Guiné-Bissau onde, até 1965, desempenha as funções de alferes-médico numa das frentes da guerra colonial. Quando regressa a Lisboa já não é forçosamente o mesmo homem. Luíz Goes explica: «A experiência militar foi enriquecedora ao máximo – o conhecimento do ser humano tem muitas vezes de se fazer na frente de combate. Depois, quando voltei, estava preocupado com outros assuntos que não os da música. Não tinha casa própria, estava a viver com familiares e, embora não fosse pobre, não tinha tranquilidade para fazer a vida artística.»

Em 1967, e pondo fim a uma pausa de dez anos, Luíz Goes grava o seu primeiro álbum em nome próprio, intitulado "Coimbra de Ontem e de Hoje" para a Valentim de Carvalho e editado com o selo Columbia. A gravação decorre em Março de 1967 nos Estúdios de Paço d’Arcos pelo técnico Hugo Ribeiro e as condições são extraordinárias, uma vez que nos ensaios é possível contar com a presença e as opiniões autorizadas de Armando Goes, Edmundo de Bettencourt, Artur e Carlos Paredes, Fernando Alvim... Em suma, os grandes nomes dos veteranos do Canto de Coimbra. Luiz Goes canta poemas seus, de Armando Goes, Edmundo de Bettencourt, António Botto, Carlos Figueiredo, Leonel Neves e Fausto José, sendo as composições assinadas por João Bagão, Luiz Goes, Armando Goes, Carlos Figueiredo e D. José Paes de Almeida e Silva. No acompanhamento instrumental participam João Bagão, Aires Máximo de Aguilar (guitarras), António Toscano e Fernando Neto Mateus da Silva (violas), em todos os temas, excepto "Balada da Distância", "No Calvário", "Canção da Infância" e "Balada do Mar", cujo acompanhamento é de João Figueiredo Gomes (viola), que nos três últimos temas faz parceria com Carlos Paredes (guitarra). Note-se que Carlos Paredes não se limita a ser um mero acompanhador, ao estilo clássico, e faz a sua guitarra entrar em diálogo, quase de igual para igual, com a voz de Luiz Goes.
A origem do trabalho esteve em João Bagão, exímio executante da guitarra de Coimbra, que havia composto uma colecção de músicas especialmente idealizadas para a voz abaritonada de Luiz Goes e o encontro entre ambos dar-se-ia por intermédio de António Toscano. Este, no preâmbulo ao livro "Luíz Goes de Ontem e de Hoje" (Edição Universitária, 1998), confessa: «Guardo um secreto orgulho de ter sido eu a aproximar o Goes do Bagão (...). Colega na Faculdade de Ciências de meu irmão, que mo apresentou (...), sabedor que o Goes voltava da Guiné, onde serviu como médico, falou-me em nos encontrarmos com ele.» E é assim que Luiz Goes, nos ensaios, se começa a aperceber que nesse círculo liderado por João Bagão, onde também pontificava Leonel Neves (autor de letras interpretadas por vozes tão ilustres como Amália Rodrigues e Maria Teresa de Noronha), se respira o clima criativo que sempre procurara em Coimbra.

Luiz Goes lembra: «O álbum de 1967 é um disco de maturidade, de alguém que tem outra experiência de vida. Um disco de um tipo magoado por dentro e por fora. Para mais com a percepção que muita coisa tinha de mudar em Portugal e com a necessidade de o transmitir. É também um disco onde metade dos temas se chamam baladas, uma designação que emprego quando tenho a certeza de que não estou a cantar "fado". São temas que correspondem a uma maior liberdade de expressão, porque o fado é muito limitativo. As baladas são, afinal, apenas canções. Poderá perguntar-se: mas o que há aí de coimbrão? É a mesma coisa que apanhar um comboio em França, ver um tipo ao fim da carruagem, e mesmo sem falar com ele ter a certeza que é português.»
A "Balada do Mar" (letra e música de Luiz Goes) que remata o alinhamento do disco, prenuncia um das temáticas dominantes no álbum seguinte, precisamente intitulado "Canções do Mar e da Vida", gravado em Julho de 1969, também por Hugo Ribeiro, nos Estúdios de Paço d’Arcos.

Fruto da colaboração com João Bagão e o seu grupo, este não é contudo um disco sobre a Natureza, pelo menos no sentido estrito, mas antes um grito de alma contra a situação do país. Um álbum anoitecido que transpira agonia e desilusão, ao mesmo que implícita, mas decididamente, questiona o regime então vigente. Exemplo disso é "Canção do Regresso", de feição autobiográfica, em que é denunciada a guerra colonial e ao mesmo tempo a situação que os ex-combatentes vinham encontrar no rectângulo europeu: «Volto, de mãos vazias, / sem ter nada do que quis. / P’ra morrer bastam dois palmos / de terra no meu país! / Pobre de quem regressa / ao jardim e acha um deserto; / já perdeu o que está longe, / já não tem o que está perto!». Luiz Goes contextualiza assim a génese do disco: «Enquanto que o mar em Lisboa é concreto, está ali aos nossos pés, o mar coimbrão é uma ausência – uma divagação esotérica. É um mar imaginário, que para mim funciona como libertação. Essa obsessão com o mar articula-se, por outro lado, com o protesto político. Conheci pessoas como o José Manuel Tengarrinha ou o Rogério Paulo, pessoas que militavam no mesmo campo de ideias que nós. Todo esse convívio produzia em mim a necessidade objectiva de dizer certas coisas, embora eu não quisesse propriamente dizer o mais explícito. Sentia-me suficientemente livre para não estar veiculado a coisíssima nenhuma em termos de forças políticas. De resto, "Canções do Mar e da Vida" inclui também canções de amor. Porque o lirismo é outra forma de libertação. O lirismo é uma faceta que nunca reneguei – somos portugueses, ainda por cima.» As letras saíram do punho de Luiz Goes, Afonso de Sousa, Edmundo de Bettencourt e Leonel Neves, que se tornará o autor fundamental do repertório do cantor. As composições são autoria de Luíz Goes, João Bagão, Afonso de Sousa, António Toscano e Armando Goes e no acompanhamento instrumental mantém-se o elenco do disco anterior, com excepção de Carlos Paredes. Fazem parte do álbum temas tão belos como "Balada Para Ninguém", "Canção do Regresso", "Dia Perdido", "Asas Brancas", "Cântico de Um Pescador", "Boneca de Trapo", "Cantiga de Vagabundo", "Alegria" e "Homem Só, Meu Irmão", que se tornará a sua balada mais emblemática (Tu, que andas em busca da verdade / e só encontras falsidade em cada sentimento / inventa, inventa amigo uma canção / que dure para além deste momento).

Dando sequência lógica ao álbum anterior, segue-se o LP "Canções de Amor e de Esperança", gravado em Dezembro de 1971, mais uma vez por Hugo Ribeiro, nos Estúdios de Paço d’Arcos. As letras são todas da autoria de Leonel Neves (oito) e de Luiz Goes (quatro) e as composições são assinadas por Luíz Goes, João Figueiredo Gomes, António Toscano, António Andias e Durval Moreirinhas. O acompanhamento instrumental é de António Andias (guitarra), Durval Moreirinhas, António Toscano e João Figueiredo Gomes (violas). No alinhamento deste magnífico álbum, quiçá o melhor da sua discografia, figuram baladas tão sublimes e intemporais como "Cantiga Para Quem Sonha" (vide letra abaixo), "Poema Para Um Menino", "Canção Para Quem Vier", "Sangue Novo", "É Preciso Acreditar", "Canção Quase de Embalar", "Mensagem do Mar", "Balada do Rei Vadio" e "Uma Lenda do Levante". Como não é raro suceder com discos de êxito, o maior sucesso da carreira de Luíz Goes é gravado em estado de graça, sem muitos preparativos nem muitas horas de estúdio. Na verdade, o material do disco ficou pronto em duas sessões nocturnas de três horas cada. Todos os temas ao primeiro ‘take’, só repetidos por uma questão de precaução. O disco marca também o início da colaboração com António Andias, na sequência de uma zanga havida com João Bagão. O trabalho de Luíz Goes com João Bagão implicava, muitas vezes, cedências do cantor face ao guitarrista. Com António Andias, a sintonia é perfeita e Luíz Goes torna-se mais dono da sua música. Aliás, o cantor não se limita a substituir um guitarrista por outro já que decide dispensar a guitarra portuguesa em toda a face A do LP. O cantor fala dessa opção: «Era preciso demonstrar que a guitarra portuguesa não é imperativa numa canção de matriz coimbrã. A viola é só por si um suporte perfeitamente válido. No fundo sou um fiel infiel. A minha infidelidade à música coimbrã respeita apenas à ortodoxia. Mas nunca quis destruir a música de Coimbra. Quis fazer uma revolução por dentro. Dar o meu contributo para que ela atingisse uma determinada dimensão, sem infringir a sua essência.»

Esta revolução estilística acaba por ser o resultado natural do aprofundamento do idealismo já manifestado no álbum precedente. Luíz Goes mantém-se a uma prudente distância da militância política que se radicalizara entre os seus antigos companheiros de Coimbra. É o próprio cantor quem nos esclarece sobre o seu posicionamento: «Tivemos trajectos de vida completamente diferentes. Enquanto José Afonso e Adriano Correia de Oliveira se mantiveram em Coimbra alguns anos e ainda viveram a época dos motins académicos, eu em 1958 já estava em Lisboa. O Almeida Santos dizia-me, no outro dia, que se eu tivesse vivido essa época em Coimbra não teria acabado o curso. É bem provável que tenha razão. Depois a minha maturação em Lisboa foi diferente e sempre foi muito difícil arregimentarem-me! Por isso, depois do 25 de Abril, já em plena democracia ou a caminho dela, quando não se sabia qual a modalidade de democracia para a qual o país se encaminhava, cantava-se o Luíz Goes. Isto é significativo. Quer dizer que eu não era agarrado a este ou àquele partido, embora no fundo sempre acreditasse no socialismo democrático.»

Em 1973, a Valentim de Carvalho edita uma compilação temática (reeditada em CD pela EMI-VC, em 1992) reunindo temas de Carlos Paredes, José Afonso e Luíz Goes. Os quatro temas de Luiz Goes foram retirados do álbum "Canções do Mar e da Vida", e são: "Alegria", "Homem Só, Meu Irmão ", "Boneca de Trapo" e "Canção do Regresso".
Depois de um interregno de doze anos sem registos discográficos, em 1983 Luiz Goes grava o LP "Canções Para Quase Todos", a partir de poemas seus, de Leonel Neves, Miguel Torga e Edmundo de Bettencourt. As composições são da autoria de Luiz Goes, João Bagão, João Figueiredo Gomes, António Toscano e Durval Moreirinhas e o acompanhamento é feito por João Bagão, Aires Máximo de Aguilar (guitarras), João Figueiredo Gomes, António Toscano e Durval Moreirinhas (violas). O álbum tem a produção de Mário Martins e é gravado nos Estúdios de Paço d’Arcos, de novo pelo reputado Hugo Ribeiro. Outro trabalho com a marca magistral de Luíz Goes onde pontificam temas tão belos como "Canção para Quase Todos", "Viagem de Acaso", "Balada dos Meus Amores", "Teu Corpo", "Canção de Todos os Dias", "Requiem pelos Meus Irmãos", "Última Canção de Amor", "Desencontro" e "Regresso da Pesca".
O cantor dá as suas razões para tão longo hiato na sua discografia, sobretudo depois da Revolução de 1974: «Nessa altura já não se sentia tanta urgência em dizer coisas. Eu gravei sempre muito pouco. Depois fui sempre arrastado por outros na parte prática e o grupo que me motivava desfez-se. Comecei a não encontrar aquilo que eu precisava que fosse feito. Depois nunca vivi só da música – quem me dera a mim! Se estivesse em Coimbra talvez tivesse sido mais fácil, porque entretanto surgiu uma plêiade de instrumentistas notabilíssimos».

Embora Luíz Goes não o diga, houve outros razões mais dramáticas para um tão longo período sem discos: na verdade, o cantor teve graves problemas de saúde, mais concretamente crises de asma que, por mais de uma vez, o deixam à beira da morte. Até que no início dos anos 80 recupera, reconcilia-se com João Bagão e reconstitui o grupo de instrumentistas que o acompanharam no final da década de 60. "Canções Para Quase Todos" é o retrato desse período de sofrimento e da sua superação. É o próprio cantor que confessa: «Houve ali uma necessidade íntima de fazer coisas outra vez. A vida foi andando e eu não pude deixar de traduzir as minhas próprias decepções. No fundo considero-me um humanista. Sempre tive uma grande preocupação com a vida dos outros. Estou sempre com medo de prejudicar, de pisar alguém. Aí está outro motivo porque não gravei mais. Comecei a pensar: "Se vou gravar com este, então não gravo com aquele" e arrependia-me. Ainda hoje sinto o mesmo.»

Talvez sejam estas as razões que ajudem a explicar que depois do álbum "Canções Para Quase Todos", e durante mais de duas décadas, Luíz Goes não tenha editado nenhum trabalho em nome próprio e apenas gravado temas avulsos para diversas edições discográficas: "Dobadoira" e "Fado da Despedida" para o LP "Tempo(s) de Coimbra" (Movimagens/EMI-VC, 1984); "O Meu Menino" (Popular / Fernando Machado Soares) para o LP "De Coimbra Para a UNICEF" (Videofono, 1985); "Toada Para Uma Cidade" (letra e música de Jorge Cravo) para o CD "Folha a Folha" (Numérica, 1999), de Jorge Cravo e o Grupo Presença de Coimbra.

Nos anos 90, Luíz Goes declara: «Gostava de gravar mais uma coisa ou outra. Agora que estou prestes a reformar-me da carreira médica, vou ter mais tempo para a música. Mas também é verdade que tenho sido tratado de forma tão fraterna e elogiosa que me pergunto o que posso mais fazer. Não quero estragar o está feito».

Em 2002, assinalando os 50 anos da primeira gravação de Luíz Goes, a EMI-Valentim de Carvalho, reúne a obra integral numa cuidada edição intitulada "Canções Para Quem Vier", constituída por quatro CD e um livro com diversos textos e as letras do seu magnífico repertório. De um desses textos respigo as palavras sábias e justas de Carlos Carranca: «A sua obra é um monumento humano. É obra moça. Não exibe velhices precoces, é fruto de uma personalidade riquíssima, de uma sensibilidade invulgar e de uma visão plural da vida. – É através de ti, da tua voz, das tuas interpretações, dos teus poemas, que Coimbra ultrapassa os limites da cidade, vai mais longe. Vai ao encontro de quem sonha, do homem só, adquire sangue novo. Chega mais longe porque tu lhe insuflaste a tua própria vida, lhe deste a tua inteligência e a tua criatividade inacessíveis aos que de Coimbra se contentam em imitar o estilo, a exibir erudição, a contabilizar louvores. Luiz Goes não só canta, como escreve sobre nós, e fá-lo apaixonadamente. Os labirintos da nossa alma profunda percorrem as suas canções. São pedaços de nós, de Portugal, de uma paisagem física e humana que visceralmente somos. Em Luíz Goes habitam as múltiplas influências do trovador inquieto e intemporal, do poeta, do respeitador da tradição, no que ela possui de essencial, rejeitando exibicionismos vocais, poéticos saudosíssimos serôdios e intransigências reaccionárias. Luíz Goes é um cantor da Saudade. Mas de uma saudade que nos faz compreender que todos nós comparticipamos num ser universal.» (excerto da comunicação "Luíz Goes: de ontem, de hoje e de sempre", proferida por Carlos Carranca, a 4 de Julho de 1998, aquando da cerimónia de entrega da Medalha de Ouro de Coimbra a Luiz Goes).

E será, finalmente, em 2005 que Luiz Goes virá a gravar um novo álbum, regressando à sua Coimbra de sempre, concretizando um projecto do compositor e guitarrista João Moura («A voz de Goes estava no meu subconsciente desde o início deste projecto»). Com o título "Coimbra: Espírito e Raiz", a edição é composta por CD e DVD, e ainda um livrinho intitulado "Coimbra do Meu Tempo" que, além de um texto do próprio Luiz Goes e dos poemas cantados, inclui também um conjunto de fotografias (a preto e branco) da autoria de Mário Afonso, o primeiro presidente da secção de fado da Associação Académica de Coimbra. O CD integra 13 temas: sete da autoria de João Moura (música) e Carlos Carranca (letras), três de Luiz Goes, Edmundo de Bettencourt e José Santos; e mais três composições para guitarra e flauta, da autoria de João Moura e Abel Gonçalves, sendo uma delas um tributo a Carlos Paredes. Sobre este trabalho escreveu José Henrique Dias (Professor da Universidade Nova de Lisboa e do Instituto Superior Miguel Torga): «Uma guitarra e uma voz. A guitarra de João Moura, a voz de Luíz Goes. A música de matriz coimbrã, na mais alta expressão, está de volta na raiz e no espírito, profundamente renovada, tocada pelo sopro do génio. Rei Midas que aurifica onde a sua voz ressoa, sentida de um sentir que é irrepetível, onde os anos suportam pela sensibilidade a memória do seu esplendor de outros tempos, Luíz Goes surge a cantar versos de Carlos Carranca e também versos seus e de José Santos num novo objecto de culto que deve ser ouvido, lido e visto para se voltar a sentir a música coimbrã no que pode ter de universalidade. Se os versos de Carlos Carranca, escritos sobre a música, têm a simplicidade que os torna cantáveis sem perda de substância poética, as composições de João Moura acordam em nós ecos da intemporalidade só possível onde a inovação acrescenta e restaura a harmonia apelativa de uma Coimbra que, mais que um lugar, é algo que anda por dentro de nós, nos habita para nos fazer em cada instante reviver, não o passado morto, mas uma espécie de magia que não se explica por palavras, que só entende quem a viveu nos verdes anos e que assalta os afectos de quem nela não viveu.»

Em 18 de Outubro de 2005, Luíz Goes é distinguido com o Prémio Fado de Coimbra, atribuído pela Fundação Amália Rodrigues. A maior fadista portuguesa, lá no assento etéreo onde repousa, terá certamente esboçado um sorriso de contentamento, conhecida que era a profunda admiração e estima que devotava a Luíz Goes, certamente consciente de que ele era o seu equivalente na canção de matriz coimbrã.
No dia 25 de Novembro de 2006, no Casino do Estoril, é prestada uma Homenagem Nacional a Luiz Goes, num espectáculo apresentado por Sansão Coelho. No evento, promovido pela Associação de Antigos Estudantes de Coimbra em Lisboa, estiveram presentes Carlos Encarnação (Presidente da Câmara Municipal de Coimbra), António de Almeida Santos (Sócio Honorário n.º 1 da Associação de Antigos Orfeonistas e Presidente da Assembleia Geral da Associação anfitriã), e ainda os representantes de várias Associações de Antigos Estudantes do país e até da Guiné-Bissau, onde o cantor prestou serviço militar.

A discografia de Luíz Goes não é vasta, mas a rara qualidade e beleza da sua voz aliada a poemas que se contam entre os mais belos da língua portuguesa, fazem dele uma das figuras cimeiras da música portuguesa de todos os tempos. António Toscano, amigo e acompanhador do cantor nos álbuns gravados para a Valentim de Carvalho, define assim a voz e a arte de Luíz Goes: «O que um leigo em música mas com alguma sensibilidade pode dizer é que se trata de uma voz portentosa: cheia, poderosa, de forte acento abaritonado mas de enorme amplitude, com plasticidade e timbre raros, que permite ao Goes alcançar com a maior naturalidade, interpretações de qualidade e brilho inimitáveis, a que também não são estranhas a inteligência dos poemas e das circunstâncias e a emotividade que lhe é própria.» Citando o professor José Henrique Dias: «Com Amália e Carlos Paredes, Luiz Goes está na galeria dos grandes intérpretes do século XX, expressões maiores do ser português.»
Contudo, e apesar desta evidência, o cantor tem sido vítima de um generalizado "esquecimento" na rádio portuguesa, a que não escapa a estatal RDP. Efectivamente, a aparição de Luíz Goes na Antena 1 tem-se restringido, e mesmo assim muito esporadicamente, à rubrica "Alma Lusa" e aos programas "Vozes da Lusofonia" e "Lugar ao Sul". O álbum de 2005, por exemplo, foi completamente ignorado.

Discografia:

- Fados de Coimbra - 2 vols. (78 rpm, Melodia/Alvorada, 1952, ed. 1953)
- Fados e Guitarradas de Coimbra (3EP, Alvorada, 1956) (colectivos)
- Serenata de Coimbra (LP, Philips, 1957); Fados de Coimbra (CD, Polygram, 199?)
- Coimbra de Ontem e de Hoje (LP, Columbia/Valentim de Carvalho, 1967; CD, EMI-VC, 1995)
- Canções do Mar e da Vida (LP, Columbia/Valentim de Carvalho, 1969; CD, EMI-VC, 1995)
- Canções de Amor e de Esperança (LP, Columbia/Valentim de Carvalho, 1971; CD, EMI-VC, 1995)
- Carlos Paredes/José Afonso/Luiz Goes (LP, Columbia/Valentim de Carvalho, 1973; CD, EMI-VC, 1992) (compilação colectiva)
- Canções Para Quase Todos (LP, EMI-VC, 1983; CD, EMI-VC, 2001)
- O Melhor de Luiz Goes (CD, EMI-VC, 1989) (colectânea)
- Homem Só, Meu Irmão (CD, EMI-VC, 1996) (colectânea)
- Canções Para Quem Vier: Integral 1952-2002 (4CD, EMI-VC, 2002)
- Coimbra: Espírito e Raiz (CD/DVD, Coimbra XXI, 2005)

Fontes:
- Literatura inclusa na discografia de Luiz Goes
- Enciclopédia da Música Ligeira Portuguesa, dir. Luís Pinheiro de Almeida e João Pinheiro de Almeida, Círculo de Leitores, 1998
- Página http://ccarranca.blogspot.com/2006/09/matriz-coimbr-que-outra-msica-jos.html

Propostas para a 'playlist' da RDP-Antena 1 (e Antena 3):
(por ordem alfabética)

- Asas Brancas (in "Canções do Mar e da Vida")
- Balada da Distância (in "Coimbra de Ontem e de Hoje")
- Balada do Mar (in "Coimbra de Ontem e de Hoje")
- Balada do Rei Vadio (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Balada dos Meus Amores (in "Canções Para Quase Todos")
- Balada para Ninguém (in "Canções do Mar e da Vida")
- Boneca de Trapo (in "Canções do Mar e da Vida")
- Canção da Infância (in "Coimbra de Ontem e de Hoje")
- Canção de Todos os Dias (in "Canções Para Quase Todos")
- Canção do Regresso (in "Canções do Mar e da Vida")
- Canção Pagã (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Canção para Quase Todos (in "Canções Para Quase Todos")
- Canção para Quem Vier (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Canção Quase de Embalar (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Cântico de Um Pescador (in "Canções do Mar e da Vida")
- Cantiga de Vagabundo (in "Canções do Mar e da Vida")
- Cantiga para Quem Sonha (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Chamo-te Niña (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Desencontro (in "Canções Para Quase Todos")
- Dia Perdido (in "Canções do Mar e da Vida")
- É Preciso Acreditar (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Homem Só, Meu Irmão (in "Canções do Mar e da Vida")
- Mensagem do Mar (in "Canções de Amor e de Esperança")
- No Calvário (in "Coimbra de Ontem e de Hoje")
- Poema para Um Menino (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Regresso da Pesca (in "Canções Para Quase Todos")
- Requiem pelos Meus Irmãos (in "Canções Para Quase Todos")
- Sangue Novo (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Teu Corpo (in "Canções Para Quase Todos")
- Trova da Vila da Feira (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Última Canção de Amor (in "Canções Para Quase Todos")
- Uma Lenda do Levante (in "Canções de Amor e de Esperança")
- Viagem de Acaso (in "Canções Para Quase Todos")


Cantiga para Quem Sonha

(Letra: Leonel Neves; Música: João Figueiredo Gomes)


Tu que tens dez réis de esperança e de amor
Grita bem alto que queres viver.
Compra pão e vinho, mas rouba uma flor:
Tudo o que é belo não é de vender.

Não vendem ondas do mar,
Nem brisa ou estrelas,
Sol ou lua cheia.
Não vendem moças de amar,
Nem certas janelas,
Em dunas de areia.

Canta, canta como uma ave ou um rio,
Dá o teu braço aos que querem sonhar.
Quem trouxer mãos livres ou um assobio,
Nem é preciso que saiba cantar.

Tu que crês num mundo maior e melhor
Grita bem alto que o céu está aqui.
Tu que vês irmãos, só irmãos, em redor
Crê que esse mundo começa por ti.

Traz uma viola, um poema,
Um passo de dança,
Um sonho maduro.
Canta glosando este tema:
Em cada criança
Há um homem puro.

Canta, canta como uma ave ou um rio,
Dá o teu braço aos que querem sonhar.
Quem trouxer mãos livres ou um assobio,
Nem é preciso que saiba cantar.


(in "Canções de Amor e de Esperança", 1971)

Nota: Com base num texto retirado do blog "A Nossa Rádio, da autoria de Álvaro José Ferreira"

No texto anterior, são apresentados, dentro do universo que é o Canto e a Música de Coimbra, cultores, poetas, compositores, cantores e músicos, cujas resenhas biográficas, irei apresentando. São eles:

Dr. Afonso Costa de Sousa (1906 -1993)- Direito. Guitarrista.
Artur Maria Santos de Moura Coutinho Almeida d'Eça (1902 1958.
Dr. Ângelo Vieira Araújo (n. 1919) - Medicina. Compositor, poeta e intérprete.
Dr. António de Almeida Santos (n. 1926)- Direito. Compositor, cantor, guitarrista.
Eng. António Manuel Andias da Paula (n. 1946)- Engenharia Químico - Industrial. Guitarrista, compositor.
Prof. Doutor António Pinho Brojo (1928 - 1999)- Farmácia. Guitarrista, compositor.
Dr. António Paulo Menano (1895 - 1969)- Medicina. Compositor, cantor.
Dr. António Jorge Moreira Portugal (1931 - 1994) - Direito. Compositor, guitarrista.
Dr. Armando do Carmo Goes (1906 - 1967) - Medicina. Compositor, cantor.
Artur Paredes (1899 - 1980). Compositor, guitarrista.
Augusto Hilário da Costa Alves (1864 - 1896). Compositor, guitarrista, cantor.
Dr. Aurélio Afonso dos Reis (n. 1919)- Medicina. Violista.
D. Carlos Diniz de Figueiredo Júnior (1924 - 1999)-Direito. Compositor,autor, violista.
Prof. Carlos Alberto Carranca de Oliveira e Sousa
(n. 1957) - História. Poeta, cantor.
Durval Araújo Cerqueira Moreirinhas (n. 1937).Compositor, violista.
Dr. David José Leandro Ribeiro (n. 1937)- Direito.
Guitarrista.
Edmundo Alberto de Bettencourt (1899 -1973).Poeta, compositor.
Fausto José (1903 - 1975). Poeta.
Fernando Alvim (n. 1934). Violista.
Dr. Fernando José Monteiro Rolim(n. 1930) - Medicina. Cantor.
Dr. Fernando Machado Soares (n. 1930) - Direito. Compositor, cantor, violista.
Dr. Fernando Manuel Magalhães Martins Xavier (n. 1933)- Medicina. Compositor, guitarrista, violista.
Dr. Francisco Paulo Menano (1888 - 1970) - Direito. Compositor, guitarrista, cantor.
Eng. Fernando Neto Mateus da Silva (n. 1933)- Engenharia Civil. Violista.
João Figueiredo Gomes (n. 1939). Compositor, violista.
Dr. João Carlos Vidaurre Pais de Moura (n. 1957)- Farmácia. Compositor, guitarrista.
Dr. José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos (1929 - 1987)- Letras. Compositor, cantor, violista.
Dr. Jorge Elias Costa Tavares Cravo (n. 1961)- História. Compositor, cantor.
Dr. António Jorge Godinho Marques (1938 - 1972)- Histórico - Filosóficas. Guitarrista, violista.
Prof. Doutor José Henrique Rodrigues Dias (n. 1933?)- Letras. Cantor.
Dr. José Manuel Niza Antunes Mendes (n. 1938)- Medicina. Compositor, guitarrista, violista.
Eng. D. José Pais de Almeida e Silva (1899 - 1968)- Engenharia Química. Compositor.
Dr. José Paradela de Oliveira (1904 - 1970)- Direito. Compositor, cantor.
Dr. Leonel Neves (1921 - 1996) -Matemática. Poeta.
Dr. Levy Casimiro Baptista (n. 1935)- Direito.
Violista.
Lucas Rodrigues Junot (1902 - 1968) - Matemática. Cantor, guitarrista.
Cor. Manuel Costa Brás (n.1934)- Militar. Violista.
Eng. Manuel Osório Pinto Mora (n. 1935)- Engenharia Química. Guitarrista.
Dr. Manuel Joaquim do Ó Gomes Pepe (1930 - 2007). Violista.
Dr. Miguel Torga (Adolfo Correia Rocha) (1907 - 1995)- Medicina. Poeta e escritor.
Vicente Arnoso (Vicente Miguel de Paula Pinheiro de Melo - 3º Conde de Arnoso) (1880 - 1925). Poeta.

24 de novembro de 2007

O ensino da VIOLA em Coimbra


Manuel Paixão Ribeiro, professor em Coimbra, vê editado pela Real Officina da Universidade de Coimbra, em 1789, o seu método de ensino de viola (certamente o cordofone popular, de cinco ordens de "arame", chamado viola-toeira), denominado "NOVA ARTE DE VIOLA - que ensina a tocalla com fundamento sem mestre". Manuel Paixão Ribeiro, que se apresenta como "Professor Licenciado de Gramática Latina, e de ler, escrever e contar em a Cidade de Coimbra", divide este seu trabalho em duas Partes: "Huma Especulativa, e outra Practica".

No livro, à guisa de apresentação, refere como "Obra útil a toda a qualidade de Pessoas; e muito principalmente ás que seguem a vida literária, e ainda ás Senhoras".
No Prólogo, refere que se apoia no "Resumo do meu Mestre, o senhor José Maurício".

Esta grande figura da história da música portuguesa José Maurício (1752 - 1815), que assume em 1802, as funções de lente da cadeira de de Música, na Universidade de Coimbra, merece que voltemos a abordar a sua pessoa, logo que possível, e ao seu papel determinante, no ensino da música, em Coimbra. José Maurício, publicou em 1806, um Método de Música, muito importante, destinado a orientar os estudos musicais dos seus alunos. Segundo João de Freitas Branco (1922 - 1989), ficaram ecos dos serões na sua casa em Coimbra, onde se ouviam obras de Haydan e Mozart.

15 de novembro de 2007

HOMENAGEM A MIGUEL TORGA (1907 - 1995) (Dr. Adolfo Correia Rocha)

Homenagem a Miguel Torga “Aqui, Diante de Mim

No 87º Aniversário da Tomada da Bastilha organizado pela Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra em Lisboa

Casino Estoril – dia 24 de Novembro de 2007

Esta será uma recriação da vida de Torga (a escola, o seminário, o Brasil, Coimbra, a prisão, a morte da mãe, a liberdade e a sua relação com a Pátria) da responsabilidade de Carlos Carranca com a actuação de mais de noventa alunos da Escola Profissional de Teatro de Cascais, contendo momentos cénicos de canto, dança e poesia.
Participação especial de Marco Medeiros ao piano e de Luiz Goes.

Inscrições na AAECL (Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra)
Rua António Pereira Carrilho, 5 1º
1000-104 Lisboa
tel: 218 494 197
fax: 218 494 208

e-mail: aaecl@sapo.pt

Carlos Carranca




Breve resenha biográfica de Miguel Torga
(apresentada no site "O Leme", texto da responsabilidade da Sra. Profª Maria Luísa Paiva Boléo)


Médico que sempre foi, sem qualquer dimensão comparativa, com o desempenho como escritor, terminava as consultas no seu consultório no Largo da Portagem, nº 45 e como homem despido de vaidades mundanas, rumava a casa, apanhando o eléctrico.

O meu pai, Manuel de Paiva Boléo, foi professor da Universidade de Coimbra na Faculdade de Letras e, desde sempre, na minha família se falou de Miguel Torga, também porque a mulher do escritor, Andrée Crabbé Rocha também professora de Letras cruzava-se com o meu pai na faculdade. Uma irmã minha, amiga do Leandro Morais Sarmento morava ao lado de Miguel Torga e passavam lá muitos fins de tarde a conversar. Lembro-me da minha irmã comentar que lhe parecia Miguel Torga ter uma grande angústia perante a morte, o que é patente no seu «Diário».
A admiração e o conhecimento da obra de Miguel Torga eram partilhados na minha família, onde a minha mãe nos recitava «Herodes» “o tal das tranças” lá na Judeia que foi para o Inferno “só porque não gostava de crianças” e outros textos.
Como é sabido Miguel Torga não era uma pessoa muito dada, mas eu várias vezes meti conversa com ele, até porque era temas não faltavam dado vivermos na mesma cidade. Mais de uma vez fiquei ao seu lado no tal eléctrico, e, se muitas pessoas o conheciam, muitas mais naquela carreira ignoravam quem era aquele senhor, de faces magras, como que esculpidas em rocha, com um tom de pela escura e um olhar penetrante. Com o tempo muitas mais sabiam que ele era um escritor de repercussão mundial e uma das glórias de Coimbra, embora ali não tenha nascido.

Mais tarde, nos anos 90, conheci em Lisboa uma japonesa que foi professora de literatura portuguesa numa universidade de Tóquio e que traduziu vários textos de Miguel Torga para japonês. Chama-se Takiko Okamura e é muito conhecida no meio literário português, porque já foi bolseira do Instituto Camões e penso que da Gulbenkian e que além de Torga já traduziu José Cardoso Pires e «Os Lusíadas» para japonês e publicou há escassos anos (2003, salvo erro) uma bem documentada biografia de Wenceslau de Morais, em japonês. A professora Takiko admirava muito Miguel Torga com quem esteve na sua terra natal mais de uma vez e com quem tirou fotografias, que me mostrou.

A religiosidade de Torga que perpassa pela sua obra é tão autêntica, percebe-se que foi forjada na vida dura que levou em criança, na relação próxima entre o céu e a terra. Mais tarde, no Brasil em casa do tal tio que o obrigava a trabalhos duros, a imensidão da natureza e quantas vezes não se terá interrogado sobre o que afinal fazemos neste mundo e um Deus que nem sempre nos parece magnânimo, perante tanta rudeza que nos rodeia, nas relações humanas e da paisagem agreste.

Adolfo Correia Rocha, nasceu a 12 de Agosto (dia de Santa Clara) de 1907 em S. Martinho de Anta, numa pequena aldeia de Trás-os-Montes, distrito de Vila Real. Filho de camponeses pobres, o pequeno Adolfo foi sempre muito chegado à mãe por quem nutria uma enorme afeição, como ele próprio diria em «A Criação do Mundo». Eram três irmãos. Em 1913 Adolfo Rocha terminou a escola primária com o Sr. Botelho, a quem Miguel Torga dirá que deveu muito da sua formação.

«Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição»

Miguel Torga, pseudónimo que escolheu por duas razões: Miguel por ser o nome próprio de dois mestres da língua castelhana como Cervantes (1547-1616) e Unamuno (1864-1936) grandes escritores também preocupados com a alma humana. E Torga de «torgas» urzes que florescem nas terras transmontanas, cor de vinho, com profundas raízes bem metidas nas rochas. Que melhor nome poderia ter escolhido? Não é ele também uma rocha, até no nome?

Adolfo terminou a 4ª classe com distinção e o pai percebeu que devia continuar a estudar, o que era raro na época nos meios rurais. Escapou assim à vida no campo e à enxada, que trocaria pela caneta. O pai ofereceu-lhe um cavaquinho quando terminou a 4ª classe e por não ter posses para o poder mandar estudar disse-lhe: «tens de escolher ou o Seminário ou o Brasil».

Adolfo Rocha esteve um ano no Seminário de Lamego, mas aos 13 anos (em 1920) optou pelo Brasil tendo ido para casa de um tio – fazenda de Santa Cruz, no Estado de Minas Gerais. Ali a vida do futuro escritor não foi fácil: mungir as vacas, cujo leite era o alimenta da casa, tratar dos porcos, ir ao moinho, ir a cavalo buscar o correio longe da fazenda, fazer a escrita e tudo o mais que fosse preciso. Foram dias de inferno para o jovem Adolfo, não tanto pelo trabalho, mas porque os tios lhe não dedicavam grande afecto, e ele que adorava a mãe, sentia fortemente a sua ausência.

Em 1925, como recompensa pelo trabalho de cinco anos o tio anuncia-lhe que lhe paga os estudos num colégio em Coimbra. Fez em três anos o liceu que era de sete..
Em 1928 entrou para o curso de medicina. Escreveu o primeiro livro de versos «Ansiedade» e em 1929 dá-se com o grupo da revista «Presença», onde pontoavam José Régio, Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões, mas cedo o individualismo de Torga o afasta do grupo.
É a altura em que o jovem estudante de medicina e literato lê os grandes nomes da literatura mundial: Gide, Dostoievski, Ibsen, Proust, Jorge Amado, Cecília Meireles, etc. Vive numa República na Ladeira do Seminário.
Em 1930 publica «Rampa». «Tributo» e «Pão Ázimo» em 1931.
Em 1932 começou a publicar o que seriam dezasseis volumes do «Diário».
Acaba a licenciatura em 1933 e passa a exercer a sua especialidade de clínica geral, na sua terra natal e em Vila Nova de Miranda do Corvo, mas cedo se radica em Coimbra.
Em 1934 usa pela primeira vez o pseudónimo que o imortalizaria – Miguel Torga, em «A Terceira Voz».
Escreve, em 11 de Dez de 1934, o poema «Prece»:

«Senhor deito-me na cama/Coberto de sofrimento;/ E a todo o comprimento/Sou sete palmos de lama:/Sete palmos de excremento/Da terra-mãe que me chama./Senhor, ergo-me do fim/Desta minha condição:/Onde era assim, digo não,/Onde era não, digo sim;/Mas não calo a voz do chão/Que grita dentro de mim./Senhor acaba comigo/Antes do dia marcado;/O tiro de um inimigo.../Qualquer pretexto tirado/Dos sarcasmos que te digo.»

Em 1937 escreve «A Criação do Mundo» iniciando uma autobiografia ficcionada. Viaja pela Europa: França, Itália, Bélgica, Espanha e por Portugal e colabora na Revista de Portugal dirigida pelo escritor Vitorino Nemésio. Escreve «Peregrinação»

«Corro o mundo à procura dum poema/Que perdi não sei quando, nem sei onde./Chamo por ele, e a voz que me responde/Tem o timbre da minha, desbotado./Às vezes no mar largo ou no deserto/Parece-me que sim, que o sinto perto/Da inspiração;/Mas sigo afoito em cada direcção/E é o vazio passado/Acrescentado.../Areia movediça ou solidão./Teimoso lutador, não desanimo/Olho o monte mais alto e subo ao cimo,/ A ver se ao pé do céu sou mais feliz./Mas aí nem sequer ouço o que digo;/O silêncio de Orfeu vem ter comigo/E nega os versos que afinal não fiz.»

Adolfo Rocha/Miguel Torga chegou a ter, em 1939, um consultório em Leiria, mas passava os fins-de-semana em Coimbra, com professores e intelectuais como Paulo Quintela e Vitorino Nemésio em casa de quem conheceu a futura mulher – Adrée Crabbé, de apelido, por casamento, Rocha.
Um texto de Miguel Torga sobre a guerra civil espanhola levou-o à prisão, onde esteve três meses. Casou em 27 de Julho de 1940.
Em 1941 abriu consultório de médico em Coimbra, no Largo da Portagem, com vista sobre o Mondego – a «sua» janela para o mundo.
Escreve os célebres contos «Montanha» (mais tarde com o título «Contos da Montanha» apreendido pela Censura. Começa a escrever o seu célebre «Diário».
Miguel Torga fez edições de autor, porque se recusava a entregar os textos préviamente à Censura, como era obrigatório na época e porque, dizem os que o conheceram de perto, era extremamente económico.
O seu romance «O Senhor Ventura» data de 1943, mais tarde será transposto para o cinema e foi um dos primeiros a ser traduzido para o chinês, há poucos anos. Penso que também foi traduzido pela Takiko Okamura, de que falei, para japonês.
A sua vida literária decorre com regulares edições. A mulher completa o doutoramento em 1947. A filha nasceu em 1955.
Em 1954 recusou um prémio literário atribuído por ocasião das comemorações do Centenário de Almeida Garrett.
Em 1960 o prof. Jean-Baptiste Aquarone (da Faculdade de Letras de Universidade de Montpelier) propõe Miguel Torga para prémio Nobel da Literatura. O escritor recebe em 1969 o Prémio Literário Diário de Notícias.
Com o 25 de Abril de 1974 escreveu no Diário XII:

«Golpe Militar. Assim eu acreditasse nos militares. Foram eles que durante macerados cinquenta anos pátrios, nos prenderam, nos censuraram, nos apreenderam e asseguraram com as baionetas o poder à Tirania. Quem poderá esquecê-lo. Mas pronto de qualquer maneira é um passo. Oxalá não seja duradoiramente de parada...»

Em 1976 foi-lhe atribuído o Grande Prémio Internacional de Poesia da XII Bienal de Knokke-Heist (Bélgica). Dois anos depois foi de novo proposto para prémio Nobel. Em 1978 a Fundação Calouste Gulbenkian prestou-lhe homenagem nos 50 anos de carreira literária. Em 1980 recebeu o Prémio Morgado de Mateus, ex-equo com o escritor brasileiro Carlos Drummond de Andrade.
A 10 de Junho de 1989 o júri do Prémio Camões dá-lhe esse prestigiado galardão e, em Janeiro de 1991, a revista «Le Cheval de Troie» dedica-lhe um número especial. É mais uma vez nomeado para o Nobel da Literatura pela Associação Portuguesa de Escritores.
Em 1993 publica o 16º vol. de «Diário». O último onde escreve o poema «Requiem por mim»
A 17 de Janeiro de 1995, às 12,33 minutos deixa este mundo.
Fiquemos com estas suas palavras:

«Ser livre é um imperativo que não passa pela definição de nenhum estatuto. Não é um dote, é um Dom».


PS - Acrescentarei apenas, eu (o responsável pelo blog), que um nome importante do grupo da Presença, é o de Edmundo de Bettencourt, essa grande figura do Canto e da Música de Coimbra, que sai com Torga, em rotura com João Gaspar Simões.

OS LIVROS DE APOIO AO ENSINO DA GUITARRA DE COIMBRA



Este livro de apoio ao ensino da guitarra e da viola, de Coimbra, denominado "Método de Guitarra Portuguesa" Volume I, editado há cerca de meia dúzia de anos, pelo meu amigo Paulo Soares (Jójó), compositor, intérprete e professor de guitarra e de viola. Constitui este Volume I, um marco histórico no ensino do cordofone guitarra, e a ele dedico uma admiração. Permitam-me um aparte, em estilo "Pad Zé", o célebre estudante e boémio coimbrão, dos finais do século XIX (de quem irei falar em breve), e que amava tanto os livros, que nem lhes tocava, para não os estragar. Assim fui eu com este Manual. Tenho-o num belíssimo estado de conservação (e tu, Jójó, bem sabes, o carinho que eu tinha por ele. Estava sempre guardado ... por causa do pó!)

Bem, voltando ao livro, mereceu palavras elogiosas e de reconhecimento, por parte de muitos, que todos reconhecemos como autoridades, neste universo dos instrumentos preferenciais no Canto de Coimbra: a guitarra e a viola. Publicarei em breve, alguns desses Testemunhos.O livro está esgotado, devendo ser reeditado em breve.

Recentemente, foi apresentado o livro de José dos Santos Paulo, compositor, cantor, guitarrista e professor de guitarra no Conservatório de Coimbra, denominado "Método de Guitarra Portuguesa", numa edição comemorativa dos 115 anos da Tuna Académica de Coimbra.



Coincidindo práticamente com o lançamento do livro anteriormente referido, eis que que nos é apresentado o "Método de Guitarra Portuguesa - o domínio dos acordes" Volume II (sons e acordes para a guitarra de Lisboa e de Coimbra), de Paulo Soares (Jójó), que se apresenta seguidamente



Dei uma vista de olhos sumária, apenas, no livro de José Santos Paulo, trocando uma impressões sumárias com o Teotónio Xavier. Aguardo que o amigo´, que me adquiriu o livro, me faça chegar a obra, que não dúvido do seu valor informativo e pedagógico.
Quanto ao livro do Paulo Soares, o mesmo amigo, já mo adquiriu, espero a oportunidade de o analisar (quem ler as linhas anteriores, não se iluda, com a sabedoria do escriba. Afinal, pouco mais passa "dum caga cão" inveterado).

OS GRUPOS DE FADOS E GUITARRADAS DE COIMBRA



Antes da Revolução de 25 Abril de 1974, existiam em grande parte dos Liceus Nacionais (masculinos), Orfeons, Tunas, e ainda nalguns Grupos de Fados de Guitarradas de Coimbra. A situação em Coimbra, Lisboa e Porto, era já algo diferente, sobretudo desde a crise académica de 1969, e da pressão insustentável do regime ditatorial de então.
Nos Liceus, do Minho ao Algarve, havia Grupos, tocando e cantando Coimbra, e os estudantes, tendo os seus clubes de futebol, a nível nacional, ou regional, não fugiam à regra de toda a juventude estudantil, ser da Académica de Coimbra. A capa e batina era usada, em todo o Portugal. Lisboa, com muito menos tradições académicas, também não fugia à regra, antes de 1969.
Havia 3 Academias, poucas Universidades, as rivalidades eram muitas, mas Coimbra, para quem estava longe, era sempre um amor ausente. Para os que lá estavam, era a vivência académica, na sua plenitude.

Os tempos mudaram, veio a liberdade, vieram as mudanças, respirou-se "ar puro" e hoje é tudo tão diferente. A liberdade que se conquistou, não tem preço. Muito e muito da vida de hoje, é diferente e ainda bem, do que se passava naquele tempo (há 35 anos atrás). Formei-me nesse ano, em engenharia. Não havia computadores ( não ser aqueles "monstros" de cartões perfurados). Não era permitido utilizar a máquina de calcular (tinham apararecido há muito pouco tempo) nos testes, nem nos exames.
Como foi possível! É preciso ter saudades, sim, mas do futuro!

O Pedro Ramalho (do Grupo Tertúlia Académica da Rua Larga, de 1982), manda-me a foto apresentada em cima. Este era o Grupo de Fados e Guitarradas de Coimbra, do Orfeon Académico de Lisboa, em 1962. Vejam se localizam o Pedro Magalhães Ramalho e o Luís Penedo. Depois quando souber, direi quem são os outros.
Faz sentido, pensar, no artigo do Prof. Armando Carvalho Homem "Que público para a Canção de Coimbra?" . E, como continuar a envolver a juventude, neste objectivo, sobretudo, fora de Coimbra?
E já agora não se esqueça que:
- Em todo o Portugal, se adora ouvir a Música e o Canto de Coimbra.
Ainda em relação a Coimbra, sócios e simpatizantes da Académica de Coimbra, somos alguns milhares, mas, centenas de milhares de portugueses, deverão ainda ter a Académica como segundo Clube (eu sei, que não somos um clube. Que me desculpem os puristas, na utilização da palavra Clube), mas é assim que o povo sente.

14 de novembro de 2007

EDMUNDO DE BETTENCOURT (1899 - 1973)


 
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Aqui viveu Edmundo de Bettencourt, uma grande voz da renovação e do modernismo no Canto de Coimbra, um dos poetas da Presença, mais participativos. Um homem de carácter, exigente e rigoroso, solidário e leal aos seus ideais.

Resenha Biográfica de EDMUNDO DE BETTENCOURT

Edmundo Alberto de Bettencourt, nasceu no Funchal, na Freguesia da Sé, na Madeira, no dia 7 de Agosto de 1899 e, faleceu em Lisboa, no dia 1 de Fevereiro de 1973, aos 73 anos de idade. Filho de Júlio Teodoro Bettencourt, militar de carreira e, de Leopoldina de Santana Bettencourt, viu a luz do dia, numa casa na Rua das Murças, nº 49. Seus pais, tiveram cinco filhos, a Maria, Ilda, Manuel, António e o Eduardo, tendo a mãe, dado a formação musical, aos seus filhos.

Fez o ensino primário e o liceu, no Funchal, escrevendo o seu primeiro poema aos nove anos. Durante o período liceal, integra com os seus irmãos, o conjunto musical “Os Bettencourts”. Chega a Lisboa, por altura dos derradeiros tiros em Monsanto, quando da morte de Sidónio Pais.

Matricula-se na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no ano lectivo de 1918-1919, curso que, frequenta durante quatro anos. Em 1921, vive em Lisboa, num quarto, na Rua de São João dos Bem Casados, participando em serenatas académicas, sobretudo na Costa do Castelo. Frequenta já nessa altura, com alguma assiduidade os cafés da Baixa Pombalina. Segue com muita atenção o trabalho dos Modernistas, com especial destaque para o de Almada Negreiros. No ano lectivo de 1922-1923, após a conclusão do 2º ano do curso, ruma a Coimbra e, matricula-se na Universidade de Direito, fixando residência na República do Funchal. Em 1922, conhece Artur Paredes e, estreia-se como cantor, passando a integrar o respectivo grupo. Depois de se estrear como cantor de Coimbra, em Viseu, Figueira da Foz e Coimbra, integra em 1923, uma digressão da Academia, a Espanha, ao lado de António Menano e de Artur Paredes.

Desde que a 8 de Maio de 1926, deu uma fífia ao cantar “O Fado do Choupal”, no Teatro Nacional de S. João do Porto, nunca mais subiu a uma palco, para cantar. Em 1927, integra um grupo, com Branquinho da Fonseca, José Régio, João Gaspar Simões e Miguel Torga, que lança um manifesta “Pró-Modernista”, sugerindo o título de “Presença”, para a revista do movimento, que começa a publicar-se em Março, desse ano.

As suas gravações, datam, as primeiras, de Fevereiro de 1928, feitas na cidade do Porto, voltando a gravar em Lisboa, em Dezembro de 1929. Nesse mesmo ano, torna-se compadre de Artur Paredes, vindo a ser padrinho da sua filha. Em 1930, publica o livro de poemas O Momento e a Legenda. Nesse ano, com Miguel Torga e Branquinho da Fonseca, afasta-se da Presença, fixando nesse ano, residência em Lisboa, começando a trabalhar, como amanuense, nos hospitais civis de Lisboa. 1946, é o ano do poema Liberdade, escrito para o repertório, do maestro Fernando Lopes Graça. Depois o Ar Livre, em 1947.

Regressado de Coimbra, nos anos 30, viveu em solteiro, na Rua do Crucifixo, nº 116, 1º Eq. Em 1948, casa com a Sra. D. Maria José de Menezes Bettencourt, indo viver para casa onde sua mulher habita, na Rua de S. José nº 163, 2º Dt., em Lisboa, convivendo intensamente, durante um largo período, com o grupo surrealista, que reúne nos cafés Gelo, Royal e Restauração. Poemas como a Balada dos Meus Amores e Poemas do Meu Sossego, aparecem em 1952, Relâmpago em 1957, e 1960, é o ano de Horas, Nocturno Fundo, Noite Vazia e Sepultura Aérea. Em 1960, escreve o texto de apresentação dos discos Saudades de Coimbra, interpretados pelo seu amigo e grande voz do canto de Coimbra, Paradela de Oliveira.. Em 1961, mais produção poética, com Tertúlia, em 1962, com Lassidão e, em 1963, publica o livro, Poemas de Edmundo de Bettencourt, com prefácio de Herberto Hélder. Uma vida de intervenção social humanística, de poesia, de preocupações e inquietações, dum homem de grande carácter.
Reforma-se, como delegado de propaganda médica, vindo a morrer em Lisboa, a 1 de Fevereiro de 1973.

Nota Informativa:

- Existem dois prémios literários, com regulamentos próprios, instituídos um, pela Câmara Municipal do Funchal, outro, pela Câmara Municipal de Coimbra.

- Foram feitas algumas homenagens, a este grande homem de cultura, hoje, infelizmente menos conhecido na Academia (sobre este assunto, contarei um dia, a experiência do Teotónio Xavier e do Gustavo Cerdeira).

- Sobre Edmundo de Bettencourt, publicou-se em 1999, no Funchal "No Rasto de Edmundo de Bettencourt - Uma voz para a Modernidade", da autoria do Dr. António Manuel Nunes.

- A Dra. Teresa Bettencourt Pereira (sendo madeirense, não é família de Edmundo de Bettencourt), defendeu na Universidade do Minho -Braga, uma tese sobre a vida e obra do poeta.

- Uma grupo de amigos, admiradores e conterrâneos, prepara uma homenagem evocativa da vida e obra do poeta e cantor de Coimbra, estando a tentar colocar uma lápide comemorativa, na rua onde viveu após o seu casamento: Rua de S. José, nº 163, 2º Dt, em Lisboa.

Do Blog "osolquandonasce.deslizo.com":

"Não é sem comoção que lemos os Poemas Surdos, lugar onde desemboca a terrível e libertadora aventura do poeta. Quando pensamos que estes textos foram escritos num tempo em que imperava a estética presencista e começava a instalar-se o dogma neo-realista, não podemos deixar de sentir um estremecimento.

Herberto Helder, 1963


ATRACÇÃO

De dois momentos da distância, dois corpos foram de tal modo um
para o outro, que logo duas colunas de pedra, e que eram os
braços monstruosos dum gigante, se cruzaram por detrás no
espaço, ao dar-se o embate!
Estavam os dois, um em frente do outro, conversando, com vida,
desmantelados:
Um sem um olho e com os dentes partidos.
O outro coxo e sem um braço.
E ambos escorriam sangue sobre a alvura da neve que existia e cujo
frio era música distante…
Os dois sorrindo olhavam, gelados, a paisagem, seguindo suspensos
atrás duma flor do esquecimento que se esfumava fugitiva…
Até que chegou a hora repentina do fogo mais remoto que ao aque-
cê-los os queimou devorando-os.
Sobre os cadáveres carbonizados a noite veio então abrir um sorriso
do tamanho da sua escuridão.

HORAS

Gelava o tempo branco do relógio.
Fundiu-se um dia o mostrador
aberto para dentro
num foco por onde as horas negras fugiram enlouquecidas!
Lá para longe na faixa rósea da distância
recuaram ante o incessante alarido dos sinos
e logo regressaram
desesperadamente procurando em vão
o maquinismo do relógio.

Via-se o dia fechado de silêncio
num quadrado de luz amarelada
e de novo preso o pé do jovem
quando ia para sair.

ASAS

Do colo branco da paisagem
saíram, abrindo-lhe um buraco ensanguentado,
a cara dela
que era uma sereia
e que era uma pantera a rebolar no chão
aos rugidos metálicos do amor
sob a forma de nuvens muito ao longe…

Despertei-me o felino adormecido.

Depois houve, feridas, duas bocas beijadas
que sangravam imenso na cozinha
onde ela calma e virtuosa ia mexendo a sopa!

E tudo após ter-se partido
uma enorme porção de loiça
mas como se não tivesse havido nada!

Poemas Surdos (1934-1940), in Poemas de Edmundo de Bettencourt

Verifico mais do que suporto verificar que se pega em tudo pelos lados de fora, e se não vê aquilo que esperava ser pegado e visto pelos lados de dentro. Ora isto não põe muita fé nas transformações verdadeiras, e parece-me que Edmundo de Bettencourt escreveu os seus trinta poemas expoentes para aqueles tais que ficam em casa com a pouca poesia que se vai exorbitando.

Herberto Helder, 1999